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A PRIVATIZAÇÃO DA LIBERDADE (CRÔNICA)



Texto de Marco Fialho

Sabe aquela ideia que já foi tão comum de ir à praia para espairecer e distrair-se do mundo, ou até mesmo pensar melhor sobre ele? Já era... A praia não é mais esse lugar. Quer dar um passeio, admirar as belezas da natureza com a brisa a pentear os cabelos? Quer a cada novo passo descobrir uma nova paisagem, um novo mar a massagear os pés? Isso também não é mais possível. É incrível a capacidade de apropriação a que chegamos. Até a subjetividade já nos tomaram de assalto.

Não há mais um buraco sequer que o capitalismo (ou seria o melhor dizer o capetalismo?) não tenha dominado com a sua sanha. Quem dera que São Marx nos iluminasse e nos salvasse dessa maracutaia que muitos ainda tomam como Deus, falo aqui do tal decantado deus dinheiro. Privatizaram a Companhia de luz, do gás, da água e até os raios que caem do céu. Como já bem profetizou um famoso funk carioca: "tá tudo dominado". Até as areias da praias, que sempre foram públicas.

Mas a vida tem também umas artimanhas, e olha que tem bem mais do imaginamos. Como já confessei aqui em outras paragens crônicas, tenho como segundo lar a paradisíaca Armação de Búzios, muito famosa após ser descoberta por uma musa sexual do cinema francês, ganhou até estátua para os turistas tirarem foto ao seu lado. Porque no Brasil é assim, basta alguém vir de fora e apontar o dedo para que algo vire ouro. E no caso de Búzios, como reluz essa pepita da ambição. Mas voltemos à privatização, afinal essa é a maior "inspiração" desse texto. Gosto de desfrutar de uma aprazível caminhada pelas areias da Praia da Ferradura com as suas quase inexistentes ondas. Mesmo nas manhãs invernais essas areias podem ofertar delícias inimagináveis, apesar dos percalços que surgem pelo caminho e precisamos falar urgentemente sobre eles. 

Olhar o mar em seu interminável trabalho de ir e vir é uma graça que só a natureza consegue mesmo atingir e oferecer, mas a verdade é que o caminho oferece tantas pedras que fariam inveja até ao poeta Drummond. Só queria saber quando fomos convencidos de que a privatização da areia da praia é algo normal? Que fique bem claro: não é, e não é mesmo! Chegar a uma praia praticamente vazia e ver toda a areia dominada por cadeiras e guarda-sóis não é algo tão passível de ser naturalizado. Aí você pensa: "Deus ajuda a quem cedo madruga". Infelizmente, eu complementaria com toda a minha força. Quer dizer que não posso mais sentar em qualquer lugar que estiver desocupado porque existe ali um futuro cliente que provavelmente sequer chegará? Mas a praia não é um lugar público? Mais uma vez, a resposta é não. Ou melhor, já foi sim, e olha que isso foi em um passado bem, bem recente. 

A ideia predatória de turismo movido ao lucro a qualquer preço avacalhou com tudo, e tudo porque uma outra ideia se banalizou: a de se privatizar tudo no país. Aquela ideia equivocada (e canalha) de que o privado funciona muito melhor do que o público, sabe? A consequência mais corriqueira disso foi a transformação do turista em caça. Sair em veraneio (não importa a época) é colocar-se em caça. Viramos um alvo prestes a ser abatido pelos olhos infestados pelos cifrões, supostamente abençoados. Acabou o sossego, pelo menos o do pobre homem comum que almeja ir à praia para espairecer e se energizar. Tente dar uma leve caminhada pela areia para se sentir como um pedaço de carniça a ser devorado pelos urubus, ou para ser mais exato, pelos donos das tais cadeiras, que precisam ser ferozmente ocupadas (por uma "módica" consumação mínima). Você dá um passo e logo vem um a abordar. Dá mais dez passo e vem outro. E mais dez, e mais outro. E você só queria aproveitar a paisagem, se deixar embalar pela brisa reconfortante e revitalizante, admirar as fragatas a bailar no céu e os peixinhos nadando em seu lar, ou melhor, no seu mar. Essa é a sua ambição, usufruir da natureza em sua plenitude? Adianto que não conseguirá. Enquanto esses patifes sentirem o menor cheiro de grana vindo de cada passante, essa paz não virá. 

O que estou aqui a falar é dessa privatização amalucada do turismo (ou para ser mais preciso, do turista). É cedo da manhã e você decide andar pelo Centro de Búzios, passando pela famosa Rua das Pedras (praticamente vazia pela manhã), para logo a seguir serpentear calmamente pela Orla Bardot, com sua vista exuberante. Imagina que são nove horas da manhã e essa é uma empreitada tranquila de ser fazer. Seria, se não fossem os tubarões a interromper passo a passo a caminhada querendo vender passeios de lancha ou de bugre. Para que existem as lojas, se esses comerciantes de passeio ficam a fisgar peixes para as suas redes do mal pelas ruas como lobos famintos numa floresta?   

Antigamente, você chegava no porto, dava um qualquer para um barqueiro e ele te levava a conhecer umas praias desertas, e até uma ilhotas por ali por perto. Mas não, agora virou um comércio desmedido, irracional, devastador, dominado por exploradores do alheio, sem qualquer educação e ávidos tão somente pela grana que possa dar a eles... Um dia desses fui buscar informações de valores desses passeios em uma loja especializada (que é o local de vendas de passeios) e não tinha uma viva alma para me atender, eles estavam todos na rua a atazanar quem só queria passear livremente pelas calçadas, sem ser aporrinhado por um vendedor chato e inoportuno. O sossego acabou mesmo, não tem jeito, se conforme, suas férias serão um inferno, mesmo que você opte por tirá-las no inverno. Em  qualquer horário você será importunado. Ainda tem os restaurantes que inventaram de colocar funcionários pelas calçadas a caçar clientes oferecendo promessas de promoções, a maioria delas enganosas. É isso. Ou você se conforma em ser esse alvo fácil ou faz uma placa e a pendure no pescoço: "EU NÃO QUERO PASSEIOS NEM RESTAURANTES. FAVOR NÃO INCOMODAR. 

Medidas extremas à parte, quero encerrar essa crônica sobre a privatização do turismo nas praias brasileiras contando um caso verídico que presenciei por esses dias. Estava eu andando na praia quando avistei uma senhora, dona de umas dessas malditas cadeiras a vociferar para um agente, que a prefeitura chama de 'fiscais de posturas", contra um vizinho que também aluga cadeiras, reclamando que este estava a invadir o "seu" espaço. Foi um furdunço só, um gritava daqui, outro dali, e ao final das contas decidiu-se que o espaço não seria ocupado por ninguém. O detalhe: era quase meio-dia, a praia estava praticamente vazia e as cadeiras também. Uma briga danada para o nada e sobre um bem que é público, a areia. Mas felizmente a vida tem seus mistérios e sabedoria, para quem sabe desfrutar deles, é claro. E para o bem maior da humanidade existem os bichos. Muitos duvidam da inteligência dos cachorros, eu jamais duvidei e duvidarei menos ainda depois do que eu vi. Pode até ter sido mera coincidência, mas o que eu assisti foi um vira-lata chegar com aquela cara de pau majestosa que lhe é muito peculiar, e ocupar a faixa de areia antes ocupada pela indecorosa cadeira da discórdia. Acho que essa até Marx em seu túmulo deve estar rindo e saudando o protesto silencioso e contundente desse cão contra o privatismo desenfreado que vivemos hoje.  

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