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A MELHOR JUVENTUDE (2003) Direção de Marco Tullio Giordana


O atropelo indiferente da história

Texto de Marco Fialho 

A Arteplex e a Versátil Home Vídeo juntas lançaram no final de 2021 uma edição especial em DVD de "A melhor juventude" (2003), a complexa obra de Marco Tullio Giordana composta por várias camadas históricas, sociais, psicológicas, comportamentais, filosóficas, artísticas e políticas da Itália da segunda metade do Século XX, uma obra de grande fôlego e que desafia o espectador a encarar um dos momentos mais difíceis da vida contemporânea italiana, território que teve um papel importantíssimo nas artes desde o período renascentista. O filme também dialoga potentemente com o próprio cinema, em homenagens que vão de "Jules & Jim", "Rocco e seus irmãos", "Teorema" à trilogia do "O Poderoso Chefão". Giordana está no grupo de cineastas que revitalizou o combalido cinema italiano dos anos 1980 e 1990, perigosamente invadido pela estética vazia e fútil da televisão. Junto com Paolo Sorrentino, Asia Argento, Gianfranco Rosi, Alice Rohrwacher e Michelangelo Frammartino, Matteo Garrone, apenas para citar alguns. A ótima obra "Pasolini, um delito italiano" (1995) foi a que mais projetou internacionalmente o diretor Giordana como um dos diretores a tentar dar novas perspectivas estéticas e narrativas ao cinema italiano.  

"A melhor juventude" é uma daquelas obras que realizam uma síntese cativante e simbólica sobre uma era conflituada da história italiana desde o final dos anos 1960 até o início dos anos 2000. É a partir do acompanhamento da trajetória de dois irmãos, Nicola e Matteo, que o diretor Marco Tullio Giordana traça um painel das contradições da sociedade italiana e recria um tipo de tragédia, delicada e profunda que ecoa as vicissitudes históricas da Itália após o período fascista de Mussolini, em especial o fortalecimento da máfia, das Brigadas Vermelhas (grupo extremista de orientação marxista) e o impacto tanto objetivo quanto subjetivo na vida das pessoas. Giordana nos mostra como o fascismo se enraizou, deixou marcas e se desdobrou por décadas e décadas na Itália. "A melhor juventude" é fundamentalmente sobre isso: de como a história vai muito além da superfície, dos fatos enunciados, como se entranha pelas veias da sociedade.     

O que Giordana tece com "A melhor juventude" é o aprisionamento emocional de pelo menos três gerações italianas, todos completamente enredados nas teias da história recente do país. Mas esse é o ponto crucial deste "A melhor juventude", a de como o diretor atravessa a história recente da Itália por meio de pouquíssimos personagens, como se fosse possível se fazer uma espécie de inventário das emoções, de como os fatos se emaranharam na vida das pessoas, de como cada família viveu a seu modo as tragédias políticas do seu tempo. São cerca de 40 anos de uma família transformada em seis horas de filme. Há um aspecto simbólico imenso nessa proposta e que alça esse trabalho cinematográfico a um patamar poucas vezes visto. Giordana realiza uma saga tão envolvente que de repente aquela família se torna nossa, tal o grau de carinho com que filma cada plano e cada etapa vivida por ela. 

Há uma preocupação de Marco Tullio Giordana de nos fazer apegar a cada personagem e é incrível como vamos como espectadores nos tornando íntimo de cada um deles e muito dessa cumplicidade deve-se a como Giordana usa a trilha musical em "A melhor juventude", que se apresenta basicamente em dois níveis: o primeiro pelas canções de época que nos localizam e nos identificam a uma determinada temporalidade, que é universal, como a canção "Fascinação" e outras do cancioneiro mundial e italiano, pinçados habilmente; o segundo por uma trilha mais específica, sobretudo mais intimista e perfurante do mestre argentino Astor Piazzolla, onde as emoções nos pegam tanto quanto a Nino Rota na outra inesquecível saga "O Poderoso Chefão", aquela que nos atinge pelas vísceras, nos espetam o fígado. Do ponto de vista de composição cinematográfica, essa conjunção musical se coloca como fundamental para a fruição que Giornada se pretende que é emaranhar o espectador em uma viagem que mais do que familiar é sobre a própria conformação do caráter da Itália contemporânea. 

Mas é preciso também se pensar "A melhor juventude" no que tange à criação dos personagens e antes de tudo refleti-los sob o espectro da família, instituição essa profundamente marcada pelo catolicismo e seu arcabouço moral. Creio que Giordana pensou muito nesse aspecto da importância da família para a própria noção que se tinha de sociedade italiana no século 20, de como o próprio fascismo de Mussolini se apossou da moral católica e da aliança política com o Vaticano (Tratado de Latrão) para se fortalecer e reinar soberano por duas décadas, com apoio da realeza, de empresários, proprietários de terras. Mesmo com a derrota na Segunda Guerra Mundial (1939-45). A intenção de Giordana não é de realizar uma obra documental ou de forte reconstituição histórica, esses fatos estão ali introjetados em cada cena e na construção dos personagens. 

Uma das personagens mais simbólicas do filme é Giorgia (Jasmine Trinca), que vive quase toda a vida em manicômios ou centros de reabilitação emocional. Ela faz parte de uma juventude que não conseguiu se ver como parte de um todo considerado são pela maioria ou de uma "normalidade" que via a doença social sem um filtro crítico. Ela, junto com os irmãos Matteo e Nicola formou um trio tipo "Jules e Jim" (Truffaut), indisciplinados, desenraizados e sem rumo, mas todo esse momento foi curto demais e logo ela se via novamente internada. A simples presença de Giorgia no filme soa sempre como uma metáfora de uma força irrefreável, um ser que pela própria existência tem a capacidade de lançar uma interrogação. Ela quase não fala, mas nem precisa, pois Giorgia é a própria denúncia, representa uma juventude que foi interditada, sufocada pela repressora sociedade burguesa. 

Já os dois irmãos, Matteo e Nicola, tentam tornar-se adultos em meio a esse mundo regido pelos conflitos e pelo extremismo ideológico. Matteo (Alessio Boni) é outro personagem bastante significativo dentro do enredo de "A melhor juventude", com sua permanente inadequação social. Ele até tenta se engajar a uma vida normal, em especial como um policial do Estado, embora não tardasse a perceber que esse caminho não era o que o satisfazia plenamente. Parece que quanto mais "incorporado" à sociedade mais revoltado ele ficava internamente. Matteo não viveu o amor, se esquivou dele o quanto pode e isso o foi necrosando por dentro. A saga dele é cruel, dura e sem piedade, em seu rosto transparecia a infelicidade e a inadequação social. Matteo parecia um ser que não conseguiu se encontrar, se envolvia com mulheres cis e transsexual, mas sempre com relações fugidias, incompletas. Ter deixado um filho com o seu único quase relacionamento com a sedutora Mirella (Maya Sansa), uma das personagens que melhor representa a vivacidade em "A melhor juventude". 

Por sua vez, Nicola (Luigi Lo Cascio), personagem que consegue mais manter o equilíbrio emocional e resolve estudar terapias alternativas às tradicionais manicomiais e ajudar por isso a salvar a vida conturbada de Giorgia (que perde toda a juventude afundada em crises emocionais profundas), se envolve com Giulia (outra que perde parte da juventude presa e longe da filha Sara) que se torna uma militante das brigadas vermelhas. Assim, Nicola também acaba por não formar a tradicional família burguesa tão em voga nessa época. O que Giordana constrói em sua narrativa são famílias despedaçadas pela cruel história italiana, onde as máfias e os políticos corruptos (resquícios ainda do fascismo) davam o tom e a cara da sociedade no pós-guerra. Dentro desse panorama, o título dado ao filme soa como uma instigante ironia, face às agruras de ser jovem nesse referido contexto histórico. 

"A melhor juventude" carrega consigo algumas potências significativas, como a força das personagens femininas e a fragilidade das masculinas, marca indelével da cultura italiana e bastante refletida também na cinematografia do país. A personalidade é uma marca tanto de Giulia quanto de Giorgia, de Adriana (mãe dos protagonistas), de Sara (filha de Nicola e Giulia), de Francesca (irmã dos protagonistas) e de Mirella. Afetado pelas presenças femininas, Marco Tullio Giordana aproveita para inundar a tela de sensibilidade não só pelos personagens como entre eles. Assim, o afeto torna-se o meio pelo qual as relações se reconfiguram, sendo as gerações mais novas responsáveis pela reconexão emocional familiar em um contexto histórico mais propício ao afeto. Outro aspecto importante é o da inserção das artes como elemento de resistência espiritual. Giulia é uma pianista sensível, Sara uma restauradora talentosa e Adriana uma professora profícua de literatura italiana. Muitas vezes Giordana explora nuances dos personagens por meio da arte, o que enriquece a própria narrativa do filme.  

Apesar do enredo proposto por Marco Tullio Giordana transcorrer linearmente, há desafios interessantes delegados aos espectadores. Toda a trama acontece sempre permeada por processos históricos densos, delineadores das trajetórias de cada personagem abordado. Giordana ronda os temas, embora jamais os explicite por completo. Cabe ao espectador explorar os meandros de cada novo período histórico, escavar como um arqueólogo cada cena para poder apreender o todo. "A melhor juventude", é um cinema de fôlego, vigoroso e profundo em relações às consequências da história para cada personagem. Giordana não se priva de se aprofundar em cada um deles, pois faz deles sua força motriz. Ao se aproximar deles, nos aproxima igualmente e proporciona que sofremos com eles tal como se faz em um melodrama, só que aqui há uma força maior a guiar a vida de todos, para o bem e para o mal: a força da história. Como já disse o compositor cubano Pablo Milanez "a história é um carro alegre, cheio de um povo contente, que carrega indiferente, todo aquele que a negue".

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