Sinopse:
O médico Arrowsmith é enviado para investigar um surto de peste em Dakota do Sul, tendo que decidir prioridades para o uso de uma vacina rara. Adaptado da novela de Sinclair Lewis.
Uma odisseia fordiana pelo mundo microscópico das epidemias
Texto de Marco Fialho
A primeira cena de "Médico e amante" expressa muito o que esse filme quer mostrar, um pai contando ao filho a história de um ancestral que foi para o velho oeste afirmando querer conhecer coisas novas. Sabendo-se que o diretor John Ford jamais filmou uma cena gratuita, muito menos a primeira, somos levados a refletir drasticamente sobre o intuito dessa instigante história, muito bem roteirizada por Sidney Howard, a partir do romance de Sinclair Lewis.
Nessa primeira sequência, Ford que evidenciar que o protagonista do filme foi educado para aceitar situações novas e não usuais. Ainda nesse início há outra revelação tipicamente fordiana, o mesmo pai afirma categoricamente ao pequeno filho com pretensões de se tornar um médico: "a biblioteca de um médico é composta por três livros: anatomia de Gray, a Bíblia e Shakespeare." Após esse diálogo, Ford pula direto para a Faculdade de Medicina, mas a síntese do filme já havia sido realizada em apenas poucos segundos.
Com isso, o cineasta monta sua tríade filosófica: a salvação do corpo (medicina), da alma (a Bíblia) e acresce Shakespeare, como grande conhecedor da complexa natureza humana. Ford nos revela então o papel que ele reservara à arte, muito mais que uma mera narrativa, deve estar engajada positivamente na grande epopeia do homem na Terra e reafirma uma visão artística herdeira da tradição homérica, de elevar os mais significativos feitos humanos.
Apesar de "Médico e amante" ter sido rodado em 1931, o filme já nos revela um Ford provido de uma maturidade narrativa instintiva. A história do médico apaixonado pela profissão, dividido entre o ato heroico de salvar vidas e a dedicação às pesquisas científicas, é contada com a verve de quem muito conhece o ofício de contar histórias pela arte narrativa do cinema.
O título dado à versão brasileira, "Médico e amante", não ajuda muito, e pode até enganar os mais desavisados, já que não há uma amante propriamente no filme. Há apenas uma insinuação quase no final, mas que não se justifica como título. O título original é o nome do próprio médico, Arrowsmith, pois toda a história se resume nele, no seu trabalho, e nas relações sociais estabelecidas por ele. E não é à toa que Ford utiliza o nome próprio, tal como Shakespeare gostava de fazer, pois almeja estudar o complexo comportamento humano, em especial as ambições e o fascínio emanado pelo poder nos indivíduos.
Arrowsmith é um personagem composto pelas contradições inerentes ao ser humano, dividido entre o amor pela esposa e pelo seu ofício; no caso, a ciência. O que o filme põe em jogo é a manipulação do talento de Arrowsmith como cientista e a dificuldade de não se deixar perder o foco no trabalho científico pela sedução do poder. O talentoso cientista, interpretado com muita dedicação pelo ator Ronald Colman, abre mão de uma promissora carreira de cientista para ser médico em Dakota do Sul, cidade de nascença da esposa. Ele retorna ao trabalho de cientista quando ajuda um fazendeiro e consegue eliminar uma doença que havia afetado a sua criação de vacas.
A competência de Arrowsmith como cientista o leva ao mais elevado instituto de pesquisa de Nova Iorque, Como resultado desse trabalho, ele é destacado às Antilhas para resolver um caso de epidemia de peste bubônica, onde o trabalho de médico e cientista se misturava. Arrowsmith fica então dividido entre uma função e outra. Por fim, ele controla a peste bubônica, mas perde a mulher e vários amigos que se contaminam com a doença. O caos da situação é muito bem explorado na exuberante fotografia contrastada de Ray June, em que o preto e o branco são bem demarcados, tal como está a alma do protagonista. O que se vê é fundamental, já que o inimigo aqui apesar de poderoso é minusculamente invisível aos olhos humanos, e sem contar que crises como esta revela muito tanto acerca das ambições dos individuos quanto da bravura de outros.
Mais uma vez Ford centra um filme em um homem comum exemplar. Sem perder o encanto narrativo, característica básica do universo fordiano, "Médico e amante" nos brinda com reflexões interessantes sobre o papel da ciência, da religiosidade e do homem em nossa sociedade. Os valores morais fordianos estão mais uma vez presentes, assim como a valorização da abnegação dos indivíduos para a edificação de um país. O sacrifício está na base dessa odisseia da ciência contra o mundo invisível dos microrganismos, tal como vivemos hoje com a Covid-19, que faz dessa obra de Ford ainda mais atual do que nunca. "Médico e amante" é um excelente achado da vasta filmografia de Ford, que merece ser descoberto para o deleite do bem aventurado público.
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