Sinopse:
O juiz William Priest, um orgulho dos confederados veteranos, usa do bom senso e humanidade consideráveis para fazer justiça em uma pequena comunidade dos Estados Unidos. Ford consegue criar, com uma história simples, um painel surpreendente da cultura sulista dos EUA.
Uma Kentucky entre o rural e o urbano
Texto de Marco Fialho
"Juiz Priest" começa com uma cena que traduz o mais puro humor fordiano. Contrariando os preceitos clássicos de jamais quebrar a quarta parede, o protagonista Priest aparece sentado na bancada de um tribunal conversando diretamente com a câmera e exigindo silêncio no recinto. De imediato fica uma dúvida no ar: se Priest pede o silêncio ao público do tribunal ou da sala de cinema, já que a imagem é rapidamente cortada para a entrada dos créditos do filme.
Creio ser interessante pontuar de imediato que "Juiz Priest" representa na filmografia de John Ford, um dos exemplares mais leves, bem-humorado e otimista com o futuro da sociedade dos Estados Unidos. Os diálogos são cuidadosamente azeitados, fluentes, ou para ser mais direto ainda, são deliciosos, o que reflete na própria atuação relaxada dos atores, que encontram-se em cena imbuídos em uma típica naturalidade, aliás, bem comum ao estilo narrativo do diretor. Ford jamais solicitou interpretações pungentes dos atores, o que conferia uma leveza e uma celeridade nas filmagens.
O tema central proposto por Ford é o da tolerância (que diga-se de passagem, bem adequado e necessário ao mundo de 2022) a fim de que o país consiga superar as diferenças políticas provocadas pela Guerra de Secessão (1861-1865), e Priest, interpretado com carisma por Will Rogers, que representa bem esse espírito conciliador. Bom lembrar, que em 1934, o Estados Unidos viviam o período da Grande Depressão, que atingiu gravemente toda a sociedade, sobretudo os mais pobres, após a violenta crise econômica provocada pela quebra da bolsa de valores em 1929.Há em "Juiz Priest" uma narrativa poética, calcada em uma trilha musical melancolicamente bela, que sublinha a vida solitária do protagonista. A placidez permeia a construção fílmica de Ford e faz essa obra ser profundamente delicada e reflexiva ao nos levar pensar em certos momentos sobre o sentido da vida e a solidão. O personagem de Will Rogers vai suavemente contando acerca de outros personagens, muitas vezes em um solilóquio, como se nada tivesse a fazer senão nos apresentar o universo social de Kentucky. O filme vai lentamente desfilando os personagens da cidade, as histórias e amores de seus habitantes. Habilmente, Ford nos mostra uma sociedade em extinção, ainda marcada por uma ingenuidade, povoada por galinhas, cabras, pássaros, cachorros e cavalos, uma cidade a caminho da urbanidade, embora ainda se sinta os ecos rurais aqui e acolá. Uma sociedade em franca transição, onde Ford consegue flagrar um momento em que duas formas de vida se superpõem.
Em "Juiz Priest", Ford mescla com equilíbrio cenas de humor com outras dramáticas com uma perspicaz utilização dos planos, com primazia dos médios e dos gerais, aliás os favoritos de Ford; além de um posicionamento impecável dos atores em cena e uma montagem que mantém o ritmo preciso, inclusive na duração exata dos planos. Todos esses elementos reunidos confluem para uma harmonia narrativa dificilmente conseguida pela maioria dos diretores clássicos. Observa-se que Ford abusa dos planos gerais para situar o ambiente e de médios para narrar a história. Essa suposta simplicidade nas escolhas dos planos médios tem um claro propósito narrativo: por meio deles Ford permite aos atores trabalharem à vontade com o cenário, ponto-chave da sua dramaturgia que soa sempre com uma naturalidade espantosa.
Os conflitos étnicos, em especial os envolvendo a população preta são tratados com muita sutileza, mas Ford desde o começo do filme estabelece a importância da relação entre etnias, de incorporar os pretos em um novo estatuto social, mas mantendo o caráter submisso e subalterno dos pretos como mão de obra barata. Sabe-se que o conflito étnico nos Estados Unidos só explodiu como luta organizada nos anos 1950 e 1960, com Martin Luther King, Malcolm X, os Panteras Negras, entre outros. Mas há em John Ford uma visível admiração à cultura negra, em especial às músicas executadas no filme.
Mas não podemos esquecer de que Ford é um simpatizante declarado da luta dos Confederados do Sul, que lutaram contra os Ianques do Norte, e incorpora sempre em seus filmes festas e comemorações que reafirmam o sentido de união desse grupo político. Em "Juiz Priest" não é diferente, pois recria dois momentos de festejo na narrativa, inclusive na cena final com um empolgado desfile realizado pelos veteranos confederados. É John Ford mais uma vez sendo Jonh Ford.
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