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A MOCIDADE DE LINCOLN (1939) Direção de John Ford

Sinopse:

Com apenas um livro de Direito adquirido em uma troca de mercadorias, começa a trajetória do jovem Lincoln como homem da justiça. A história é baseada no primeiro caso defendido por ele, no qual impede um injusto linchamento público de dois jovens homens do campo. 

Texto de Marco Fialho

"A mocidade de Lincoln" é um filme emblemático de John Ford e talvez um dos mais significativos para compreender a relação dele com os Estados Unidos. Ford aborda simplesmente a juventude de seu maior ídolo, o ex-presidente Abraham Lincoln (que foi assassinado), em especial o período de formação do seu caráter, dando enfoque também à paixão que o diretor nutria pelas festas populares, dessa feita a da Independência dos Estados Unidos da América. 

Ao narrar a festa, Ford expõe como vê a sociedade, o respeito dos idosos com os veteranos de guerra em contraste com a atitude rebelde dos mais jovens, sobretudo a desconfiança aristocrática à origem plebeia de Lincoln. Mas também fornece detalhes de como essas festas tradicionais acontecia, mostra diversas competições, como o concurso das tortas, o de cortar as toras ao meio e a clássica brincadeira do cabo de guerra, além dos habituais desfiles militares. Com "A mocidade de Lincoln" Ford dá continuidade ao firme compromisso de inventariar a América, pelo menos a América que aqui chamamos de fordiana. O filme é um drama épico, construído com o auxílio luxuoso de uma música inspiradora, utilizada como um um belo recurso narrativo ao compor com outros elementos, um esforço de reconstituição de época cuidadosa que muito chama a atenção e nos enlaça na história contada. 


Curioso notar que John Ford escolhe valorizar o maior ícone político dos Estados Unidos (Lincoln) em um momento histórico de relevante afirmação norte-americana no mundo, quando há a eclosão da 2ª guerra mundial (1939), que marcará a perda da supremacia europeia no mundo. E Ford investe não casualmente na própria construção do imaginário desse povo, ao lembrar a todos de onde vem e como foi esculpido o maior líder do ainda jovem Estados Unidos. Assim o filme presta uma dupla homenagem: de um lado ao grande líder que foi Lincoln; por outro, ao próprio povo, cujo Lincoln era oriundo. O que Ford resgata no caráter de Lincoln, antes de tudo, é a abnegação e o senso de justiça. Mostra que nem sempre um assassinato é vil e o discernimento deve ser considerado na análise de um determinado fato. Muito do brilho que vemos desse Lincoln se deve à direção de Ford, mas também à atuação inesquecível de Henry Fonda, completamente entregue ao personagem.

A história do filme é simples (bem afeito, aliás, ao estilo de Ford) narra e constrói o apreço de Lincoln (um homem vindo dos rincões da pobreza) pelo Direito e o posterior envolvimento dele pela política. Apesar de gozar de certo reconhecimento, a fama de Lincoln só viria após um incidente específico em que dois irmãos, em legítima defesa, matam um homem que vinha molestando a sua família. Eles são do campo, o morto da cidade e Ford mais uma vez se posiciona claramente a favor dos primeiros. Após o assassinato, uma turba enlouquecida quer fazer justiça com as próprias mãos. Entra em cena então a figura de Lincoln, o homem do Direito e futuro homem da política, impedindo o linchamento público e tornando-se o advogado de defesa dos irmãos. O discurso primoroso que realiza é de pura iniciação do Estado de Direito, momento em que John Ford ratifica a visão heroica de Lincoln. Ford com seu cinema popular e voltado a criação de mitos norte-americanos, impõe ao público a potência mítica de Abraham Lincoln, um homem simples, do povo, mas determinado e guiado por princípios e valores.      


É importante pensar esse filme de Ford também em conjunto com a ideia de Velho Oeste, pois diferente daquele momento histórico onde a bravura humana foi fundamental na construção de cidades no meio do nada, agora, já no século XX, o intento deveria ser outro, o da implantação de um racionalismo político sustentado por leis que alicerçariam uma nova sociedade, onde a força das armas não seria a tônica dominante. Claro, que esse ideal fordiano será frustrado pela própria história dos Estados Unidos no século XX, marcado pela primazia continental pelo uso da violência.              

Quem julga ser Ford apenas um cineasta da ação, em "A mocidade de Lincoln" ele prova que é capaz de ampliar esse escopo de pensamento ao projetar que o mundo das ações humanas desacompanhado de ideais torna-se um mundo vazio e sem virtudes. Nesse filme, o cineasta reafirma os valores fundamentais para os pilares da nova nação em construção, como a justiça, a força do homem simples para a sociedade, a religiosidade e a valorização da cultura popular. Esses elementos contribuíam para forjar a primazia que essa nova nação estava prestes a consolidar perante o mundo, muito mais breve que o próprio Ford poderia sonhar. A glória dessa nação se tornaria o pesadelo para muitas outras, em especial as que dividiam o mesmo continente. 



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