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RASTROS DE ÓDIO (1956) Direção John Ford



Sinopse:
Ethan Edwards (John Wayne) é um homem que parte em busca de vingança contra os povos nativos que exterminaram sua família e, ao mesmo tempo, tenta resgatar com vida sua sobrinha. 

Quando o cinema revela o Velho Oeste como mito

Texto de Marco Fialho

Quando muitos já acreditavam no ocaso do faroeste, John Ford realiza uma das maiores obras da história do cinema, "Rastros de Ódio". A película marca a volta do diretor ao Monument Valley, seu cenário predileto, para narrar uma surpreendente história de vingança. 

Ford conta basicamente com uma equipe que o acompanha há pelo menos dez anos, com destaque para o maestro Max Steiner, que apresenta uma das belas trilhas musicais já compostas para o cinema; e para o fotógrafo Wilton C. Hoch, que nos oferece imagens inacreditáveis do Monument Valley. O roteiro de Frank S. Nugent explora diversas ambiguidades ao dosar revelações e omissões de informações no decorrer da narrativa.


Mas em "Rastros de Ódio" as atenções estão voltadas para o ator John Wayne, que realiza um dos trabalhos mais consistentes de sua longa carreira. Ethan, o personagem interpretado por Wayne representa o clássico herói do filme de faroeste, aquele com um passado nebuloso e desconhecido, que chega mitologicamente por detrás da montanha e só parte ao final de sua notável e vitoriosa jornada. Ethan, após anos lutando pelos confederados, regressa ao rancho de seu pacato irmão. Enquanto isso, a região, localizada em um lugar inóspito, está mergulhada em conflitos com os povos nativos, que de tanto sofrerem com os ataques dos colonizadores resolvem pagar na mesma moeda. 

Tudo corria bem até que os Comanches armaram uma armadilha que afastou Ethan do rancho de seu irmão para realizar um violento ataque, assassinando toda a família e raptando as duas sobrinhas. Ethan, que já nutria ódio pelos Comanches, inicia uma perseguição implacável. Uma das sobrinhas é morta e a outra, que sobrevive, é criada para ser uma das mulheres de Scar, líder comanche. Dentro dessa história, Ford enxerta detalhes que a torna bem mais complexa, investindo no conflito cultural entre brancos e Comanches ao enfocar o aculturamento da sobrinha de Ethan. Mas há uma passagem que merece destaque: quando Scar morre, no embate final do filme, Ethan pratica o escalpo no líder dos  Comanches. De maneira sutil, Ford equipara Ethan a Scar, pelo simples fato de o primeiro reproduzir um ato típico da cultura que ele tanto rejeitava. A violência de Ethan acaba por revelar muito sobre esse processo colonizador e o papel dos homens brancos nesse contexto.    


Desvendar a personalidade conturbada de Ethan é uma das chaves para melhor compreender o filme. Pode-se começar pela própria compleição física avantajada, acrescidas por doses de amargura e dureza. Ethan não tem um passado evidente, tem a vida pregressa marcada pela incerteza e tão pouco terá um futuro certo, ele é construído por Ford só como presente e só ação. Não é um personagem da contemplação, age por instinto, como um animal em busca da presa e sempre se utilizando da violência como caminho para a solução de conflitos. 

John Ford em "Rastros de Ódio" atinge o ápice do aperfeiçoamento narrativo ao inserir muitas características que agregam densidade tanto aos personagens quanto à própria narrativa. Um exemplo é a paixão de Ethan pela cunhada, reprimida por ambos. A formação de uma família é o elemento fundamental que diferencia seu personagem quando comparado ao do irmão, um típico vaqueiro do velho oeste. Mas Ethan não nasceu para o pasto, a vocação dele é outra, reside na esfera do herói mitológico, um solitário preparado para a solução de conflitos, sobretudo os armados. Ethan é um típico pistoleiro, prático e disposto a fazer justiça pelas próprias mãos, um homem da antiga, que está prestes a tornar-se um decadente, sem função em um mundo calcado pela hierarquia da lei e da ordem. 


Mas a primeira e a última sequência não devem passar incólumes, principalmente aos olhos dos cinéfilos. E Ford surpreende ao fugir do habitual classicismo que ele mesmo ajudou a construir: começa o filme nos revelando o quanto o oeste é nostálgico para ele. Primeiro faz uso de uma tela preta, imprime apenas um nome e uma data: "Texas, 1868". Depois posiciona a câmera no interior escuro da casa e nos propicia um momento cinematográfico memorável ao enquadrar a partir da abertura da porta uma visão parcial, mas magnífica e majestosa do Monument Valley. Enfim, mostra o oeste emoldurado por uma janela, como se nos convidasse respeitosamente a adentrar em um universo mítico e mágico. Ford inteligentemente se utiliza da ideia da tela preta sendo vista dentro da escuridão da sala de cinema para nos arremessar e nos transpor para o interior do filme. Sem perceber já estamos juntos com ele compartilhando os mitos do velho oeste.

Na última sequência, Ford volta ao mesmo ângulo da porta, com a câmera posta novamente dentro da casa. Na imagem escura, a porta aberta se transforma em uma fresta de janela voyeurista, pela qual vemos Ethan partindo, enquanto assistimos e ouvimos a um vento abrupto fechando-a violentamente, nos informando o encerramento da mágica e nos trazendo celeremente para a vida presente. Mas algo certamente ficou. Talvez uma dúvida de que a vida revivida pela do cinema é capaz de recriar a história da humanidade com uma aura de beleza reconfortante tanto para o presente quanto para o passado.  



     

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