Sinopse:
Texto de Marco Fialho
"No Tempo das Diligências" é uma das obras mais aclamadas de John Ford, considerada uma obra-prima do faroeste: um fascinante e revolucionário road-movie do mais famoso diretor do gênero western. Um filme fundamental para o estabelecimento das diversas mitologias que envolveram a ideia de Velho Oeste, por isso uma obra seminal.
O filme traça um painel da sociedade norte-americana que imigrava para o oeste no final do século XIX. Na carruagem, que tem o destino o oeste selvagem e inóspito, viajam um banqueiro corrupto, um médico alcóolatra, uma prostituta, a esposa de um oficial, um jogador inveterado, um xerife rabugento, um condutor abobalhado, um vendedor de bebidas e um fora-da-lei que fugiu da cadeia, papel interpretado pelo jovem John Wayne em uma primeira parceria com o diretor John Ford. No percurso, diversos conflitos são deflagrados enquanto um clima de tensão permeia toda a narrativa, pois um ataque indígena pode acontecer a qualquer momento.
Até 1939, nenhum faroeste foi tratado tal como John Ford o faz em "No Tempo das Diligências", considerando-se todas as nuances psicológicas nele envolvidas. A carruagem sintetiza e aflora os conflitos existentes nesse universo. Na paisagem desértica cercada pela população originária (vista por Ford como selvagens sanguinários no filme), que "ameaçam" atacar a qualquer hora a integridade dos viajantes da carruagem, paira uma dúvida mortal: quais viajantes conseguirão chegar vivos em seu destino após a travessia das ostentosas pradarias do Monument Valley?
Existe uma representação simbólica que define com precisão essa epopeia, a do desamparo. No longo percurso da carruagem até o seu destino, todos estão à deriva, e essa mera observação eleva "No Tempo das Diligências" a um patamar filosófico expressivo, pois Ford constrói essa carruagem como um microcosmo não só dos Estados Unidos, mas também humano. Os famosos planos gerais fordianos mostram ao espectador a coragem e a grande ambição humana em enfrentá-los, e situam a posição diminuída dos animais, objetos e pessoas frente ao majestoso complexo cênico daquelas estruturas rochosas. Sabiamente, Ford toma para sua obra o próprio Monument Valley como poderoso protagonista, inebriante tanto para os personagens como também para o espectador. Ao olhar sensível de Ford não escapam como cada elemento está inserido nessa magnânima paisagem. Ford nos mostra ainda como uma história simples pode restaurar a complexidade das relações interpessoais em determinado contexto social e histórico.
Embora a caravana desfile pelos ermos caminhos oferecidos pelo Monument Valley, seus ocupantes não encontrarão ali momentos de segurança. Ford vai construindo a possibilidade de ataque dos povos originários a cada nova sequência, como se os empurrasse e os preparasse, assim como a nós espectadores, para o inevitável abismo do conflito derradeiro antes da chegada ao oeste. O roteiro esperto de Dudley Nichols, a partir da história original de Ernest Haycox, apresenta uma construção dramática perfeita ao mesclar vários personagens complexos e diálogos que homeopaticamente vão revelando as diversas nuances e motivações, assim como os segredos de cada um nessa empreitada rumo ao desconhecido. Ford, como raro e habilidoso realizador que era, ainda adicionou em seu caldo cinematográfico clássicos do cancioneiro folk norte-americano, que lentamente vai nos tornando cúmplices de uma narrativa apaixonada por esses aventureiros e aventureiras.
Após um ataque dos povos nativos, os viajantes da carruagem são salvos pela cavalaria do exército (na qual Ford era absoluto fã) norte-americano. Ao final, a caravana contabiliza apenas uma baixa e dois feridos e consegue assim chegar ao destino final, o que significa o princípio de uma nova vida para todos, com exceção de Ringo Kid, personagem de John Wayne, que realizara a viagem com o intuito de vingar a morte do pai e do irmão. A vingança de Ringo Kid é concretizada, e a saga desse herói, conforme prometido no decorrer da trama, tem seu momento de redenção, quando ele parte com a ex-prostituta para um rancho e começarem uma vida nova. Esse senso de justiça, no qual as pessoas podem superar a si mesmas e ao seu passado, muito sintetiza a filosofia de John Ford, de que o presente necessitava olhar para o passado e aprender que um grande país se construiu a partir do esforço e superação dos homens comuns.
Mas hoje não podemos analisar a obra só do ponto de vista da execução, precisamos redimensioná-la historicamente, não para desqualificá-la, mas para compreendê-la também no contexto em que foi produzida. "No Tempo das Diligências" faz parte de um importante documento cinematográfico mundial, por estabelecer as bases de uma determinada construção histórica e ideológica a serviço da consolidação de uma cultura supremacista branca, que via os povos nativos como empecilho ao desenvolvimento econômico do liberalismo defendido e praticado pelo governo dos Estados Unidos, sendo ele vindo do Partido Republicano ou do Partido Democrata. Precisamos ver que essa ideia de cinema colaborou na justificativa de aniquilação dos povos originários, impingindo a eles um papel de vilania no processo. Se Ford foi genial como cineasta, como cidadão, em muitas ocasiões, fez o que os poderosos esperavam dele como branco e de elite que era. Felizmente, em filmes posteriores ele fará uma revisão histórica dessa visão inicial e tornará a sua obra mais complexa e rica.
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