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FAROESTE CABRUNCO (2022) Direção Victor Van Ralse


Texto de Marco Fialho

A fábula e o acerto de contas com a história

O município de Campos hoje é mais conhecido pelo recente domínio da família do ex-governador Anthony Garotinho. Mas esse mal falar pode ser ampliado se reportado a um fato histórico muito anterior, a de que Campos dos Goytacazes foi a última localidade a acatar a abolição dos pretos escravizados lá no final do século  XIX. Isto se explica pelo passado ainda mais remoto de Campos trazer consigo a herança colonial da monocultura do açúcar. Todo esse ligeiro introito é para poder situar a discussão que o curta-metragem "Faroeste cabrunco", dirigido por Victor Van Ralse, traz à baila nos seus vinte e poucos minutos, pois é nesse debate cabuloso que o filme pode ser inserido. 

Pode-se dizer que "Faroeste Cabrunco" é uma espécie de fábula que vai direto ao assunto, que nos poupa de grandes preâmbulos costumeiros e isto é bem interessante. Ouso dizer que o filme nasce de um desejo de justiça do diretor Van Ralse (que também é um dos corroteiristas), diante da relação de empáfia dos poderosos com a maioria absoluta da população que vive na miséria. "Faroeste Cabrunco" bate de frente com esse poder de coronéis (aqui sarcasticamente elevado a General) que vem passando de pai para filho em um ad eternum não só restrito a Campos, mas comumente reproduzido pelos rincões afora desse continental país. Há aqui uma evidente citação e inspiração espiritual à clássica musica "Faroeste caboclo" da Legião Urbana (banda cujo Ralse é declarado fã), cuja aridez paisagística permite incorporar como elemento estético e analítico a violência do faroeste em nossa cultura.

Entretanto, a inserção do faroeste em "Faroeste cabrunco" tem filiação. A referência a "Era uma vez no Oeste" (1968), do diretor italiano Sergio Leone, é visível tanto nos significativos closes nos rostos nervosos dos personagens bem no clímax das ações quanto na maneira de conjugar a paisagem à trama ou nos movimentos de zoom na lente muito bem azeitados em algumas cenas. Pode-se dizer que "Faroeste cabrunco", mistura sem filtro, o faroeste à spaguetti à cachacinha brasileira, ao incorporar as mandingas culturais populares capazes de resolver as injustiças que a sociedade real não consegue deter ou frear. Mesmo que algumas interpretações possam soar em alguns momentos irregulares (seria devido a participação sempre marcante e carismática de Tonico Pereira frente aos outros atores?), a direção acerta ao ir sempre direto ao ponto onde quer chegar, e chega, sempre ciente da máxima expressa em "O homem que matou o facínora" (1962), de John Ford, de que "quando a lenda torna-se fato, nós a publicamos". 


Esse tom de lenda reafirma-se também no som do filme, o tempo todo referenciado em Ennio Morricone (músico habituè de Sergio Leone e que tão bem capturou e marcou o universo do chamado Western Spaghetti) ou em nuances sonoras como na cena de apresentação do General, onde os sons sofridos vindos do corpo do personagem se somam a outros que parecem reportados da sua memória, inclusive com direito a interrupção do som, que revelaria dúvidas, fragilidades e inseguranças desse manda-chuva local. A direção de arte e a fotografia igualmente marcam presença lindamente nessa mesma sequência, com objetos representativos como relógio (o tempo de poder do General estaria acabando?), uma caveira de boi (a morte o está rondando, o ameaçando?), uma arma (será que ela vai salvá-lo mais uma vez?) e uma clássica noite americana que tão bem se encaixa nesse clima crepuscular que a sequência sugere. Tonico Pereira se esbalda nessa sequência, onde mesmo sem nada falar, nos deleita com uma interpretação intimista e repleta de belos improvisos.  

"Faroeste cabrunco" parte da premissa de que uma injustiça histórica só pode ser reparada pela violência da lenda. Daí o faroeste mais do que ser um mero apetrecho estético servir também de mote à expansão do contexto analisado ao assimilar uma questão ética que é própria dele. Em um país onde a lei só existe no papel ou para os mais pobres, o quê fazer então? Porque não apelar para o universo fabular? Sim, porque nele tudo pode caber, até a providencial chegada de um cavaleiro solitário para dar conta do recado. Em "Faroeste cabrunco" o contexto torna-se igualmente protagonista, tanto quanto o personagem do General, interpretado por Tonico Pereira, e do matador justiceiro. A cidade de Campos, e sua história amaldiçoada pelo poder violento dos coronéis, aqui é chamada sugestivamente pela corruptela de seu sobrenome, Goitacá, e as forças ancestrais evocadas estão na base da cultura dos pretos escravizados, do poder feminino de suas mães de santo que misteriosamente extraem do solo o petróleo, justo ele, a riqueza que só faz aumentar o poder dos senhores da terra e que insufla as profundas desigualdades sociais de Goitacá. No passado foi o açúcar e hoje é o petróleo o objeto da sanha de ambições desenfreadas.

Muito interessante como alguns simbolismos são trabalhados em "Faroeste cabrunco", uns voltados para o poder histórico daquelas terras. Quando o personagem General chega na praça central da cidade com seus capangas em um carro 4x4 e eles formam uma fileira em frente ao palácio, símbolo do poder local, onde ainda está fincada a estátua do colonizador, tudo isso conforma uma poderosa imagem capaz de condensar o que esses personagens representam historicamente na cidade. Ela por si diz tudo. Enquanto o General se utiliza de palavras que afirmavam a sua falsa preocupação com o bem do coletivo, Ralse, que também é editor do filme, usa imagens de moradores de rua do centro da cidade, pauperizados e totalmente alijados da estrutura econômica, descortinando pela linguagem do cinema as contradições do discurso do General. Durante as trocas de tiros entre o justiceiro e os capangas do General, há uma mulher preta que fica no meio do fogo cruzado, cena essa muito simbólica sobre como reagimos cotidianamente como população aos conflitos da cidade. 


Acabei não falando propriamente da curiosa palavra cabrunco, que possui diversos significados, mas dentre os vários, pode ser relacionada à imagem do diabo. Creio que essa pode ser a maneira mais interessante para interpretá-la no contexto do filme, uma fábula relativa às mazelas que tem origem na política e na história brasileiras, um libelo cinematográfico por um mundo livre de coronéis e seus capangas, onde o cabrunco não teria vez nem participaria de um acerto de contas. Campos dos Goytacazes, ou melhor, Goitacá, bem que merecia receber esse presente: o da fábula tornar-se fato. 

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