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UM FLÂNEUR EM BÚZIOS (CRÔNICA Nº1)


Entre cães, crianças, fragatas, um cavalo prateado e outros óbices

Texto de Marco Fialho

Mais do que tudo, o que um cronista precisa mesmo é do mundo. Constatei isso quando andei viajando pela bela península de Búzios. Nessas paragens pude observar e ficar a pensar sobre a natureza da crônica. A divagar cheguei a conclusão de que o cronista precisa mais do outro do que de si mesmo. Não importa muito o que se deva ou não fazer, mas sim o que está a viver o outro. Eis que então chegamos a outro ponto chave para o cronista: ele se realiza pelo outro. Muito antes do espectador do cinema, o cronista já era um voyeur nato, um flâneur (na acepção dada por Walter Benjamin*) aquele dado a saber como o outro vive e como está a agir. Para o cronista não importa o que pensa o observado. O que está em jogo é o viver do outro, nada mais. Nada mais o escambau, pois isso é muito, não é mesmo? O cronista é um ser paciente, um tipo de fotógrafo que espera o momento exato para tirar uma foto. É sabedor que jamais mudará o mundo e se compraz plenamente com isso. Muitos podem estar a perguntar: "quem é esse tal a querer teorizar sobre o que é ser cronista?". O que tem esse tal de publicado sobre esse gênero literário tanto expressivo quanto brasileiro? Paulo Mendes Campos, Luis Fernando Veríssimo, Cecília Meireles, João do Rio, Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Raquel de Queiróz, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, me desculpem a todos vocês, cronistas com C maiúsculo desse meu país, mas esse desabusado perdeu a noção e resolveu meter a colher na especialidade de vocês.       

O cronista é por natureza um ser desleal. Tudo que ele vê e registra na sua mente se transporá em alguma medida para o papel, virará história sem pedir qualquer tipo de autorização ao outro retratado. Usufruirá da vida alheia sem dó e piedade, aumentará ou diminuirá o que viu tendo como a única certeza de que jamais narrará a coisa tal como aconteceu, já que o fato nada mais é do que o elemento a servir de base para o que será narrado pelo cronista. Se você pensa que só ficarei na elocubração, saiba que está completamente equivocado, e saiba mais: que os meus pelos já encontram-se eriçados, e quando eles entram nesse estado de aguçamento é porque já sei que as palavras já estão a querer sair do meu corpo para tornar-se um corpo autônomo. Essa necessidade de dividir é a característica mais latente do cronista. Para ele não basta ver, registrar e escrever, também quer mostrar a proeza que viu, sentiu ou viveu. O que seria do mundo sem o cronista? Seria uma desgraça sem fim, insosso a toda a prova, porque o cronista eterniza o que é aparentemente corriqueiro, o coloca em outro patamar, lhe confere um outro status perante ao mundo. 


Então vamos deixar o falatório de lado e revelemos logo a crônica, que é o que interessa a quem busca ler uma. Há sem dúvida um mistério a ser estudado pelos psicólogos: o comportamento dos banhistas numa praia. Embora tenha que admitir que não são só os humanos os transtornados numa praia, os animais em geral também mudam de atitude. Os humanos eu até entendo, afinal, eles estão mais à vontade, a começar mesmo pelos trajes. Mas os animais como explicar? É cada vez mais comum encontrar fragatas pelas areias das praias. Para quem não conhece, fragatas são aves belas, portentosas, cujo voo elegante cativam sempre os seus apreciadores. Porém, o que dizer do seu humor ou do seu gênio? Outros ainda podiam ir além e questionar até sobre o caráter. Eu vou explicar melhor o que estou a dizer. Estava eu caminhando à beira-mar, admirando a idílica paisagem da Praia da Ferradura quando avistei duas senhoras comprando empadas em um ambulante. A minha distância delas era considerável, uns duzentos metros. Participando desse painel praiano havia uma fragata razoavelmente perto das senhoras, aparentemente como quem não queria nada, apenas curtir a suave brisa marinha, aliás como toda ave faz como um tipo de ofício. Uma das senhoras logo a seguir se levantou e foi tomar um banho de mar, a outra ainda estava na areia se atracando com uma empada. A outra senhora fazia tanto agito que a senhora acabou por abandonar a empada na canga, que servia de cômodo para ambas, e se atirou igualmente no mar. Bastou poucos segundos para que a fragata assaltasse a empada e a devorasse obstinadamente. Fiquei a pensar em como as senhoras foram ingênuas para acreditarem na inocência solitária dessa fragata larápia. Melhor seria uma empada na mão do que duas voando no bico de uma fragata. 


Ainda bem que nesse selvagem mundo animal existe o cão. Esses realmente são seres de outro mundo, sempre um exemplo de companheirismo. Na minha caminhada eu avistei a um cão acompanhado de um homem que tocava na gaita radiosamente "April in Paris", o famoso clássico do jazz já gravado por tantas dezenas de intérpretes. Fiquei a imaginar na amizade daquele cão, inabalável, a escutar os agudos trinados pelo instrumento ao lado do homem. Somente o cão, o ser mais resiliente do mundo para aturar aqueles agudos que tanto incomodam os ouvidos desses sensíveis animais. 

E o que dizer de uma imensa família argentina, com mais de 15 pessoas, numa super aventura turística? Eles em si daria uma só crônica, porém só irei relatar deles um único episódio pitoresco. Eles jogavam frescobol com uma raquete que possuía apenas a metade do corpo. Fiquei por demais abismado com o fato, embora jurei a princípio que eles fossem brasileiros. Fiquei a pensar: com esse jeitinho só poderiam ser brasileiros e eis a surpresa ao descobrir que o tal jeitinho era dos nossos vizinhos hermanos. Pensei de imediato que esse tal jeitinho na verdade não é coisa de brasileiro, mas sim coisa de um povo que vive muito tempo em crise econômica e precisa arrumar uma maneira de se virar, e de permitir divertir-se em qualquer circunstância. Mas andando mais um pouco avistei outra família grande, composta de pelo menos 7 pessoas, essa realmente composta por brasileiros. Eles também assumiam nitidamente uma postura que só quem está de férias incorporam. Dois membros da família alugaram um pranchão e foram se esbaldar no mar tranquilo da Ferradura, aquele que de tão sereno parece que até onda esqueceu de passar por lá, e por isso, tão propício aos amadores sem talento dos esportes aquáticos, ou se preferir, amadores em férias. Estavam que nem pinto no lixo, como se diz por aí. Entretanto, o que mais me chamou a atenção nessa família foi uma criança que devia ter por volta de 5 anos. Notei que todos os parentes tentavam fazer o menino entrar na água e se divertir como todos ali estavam, mas ele não se permitia fazer isso. Toda vez que chegava perto da água arrumava um jeito de recuar e voltar para a areia. Havia ali um tipo beleza solidária, pois um a um dos membros da família se revezavam no esforço de fazer uma brincadeira ou algo do tipo para seduzi-lo, sempre com carinho e muito jeito. Infelizmente, acabei me dispersando dessa história comovente sem conseguir saber mais sobre o seu desfecho, tudo por causa de um casal a passear com seu cão que surpreendeu a todos ao urinar em uma barraca que vendia refrigerante. O constrangimento foi tamanho e os pedidos de desculpas tão incessantes e insistentes, como se a atitude do cachorro fosse de uma pessoa e não de um animal. Essa reação do casal dizia mais de como eles tratavam o animal do que sobre ele mesmo, o que também não deixa de ser comovente. Mas o que dizer de um cavalo prateado tomando banho de mar e a cavalgar garbosamente pelas areias? Se a cena já é inusitada para quem lê, imagina para quem presencia? O impacto é imenso, como tudo que é inesperado. 


Inesperado e inusitado são adjetivos bem propícios aqui, mas quero continuar nesse mesmo viés e empregar mais um que cabe tão bem: extravagante. Não poderia nomear de outro jeito um sujeito que vai à praia para exercitar a voz com o canto lírico, o que comprova que cada ser vivo possui um universo em si. Agora, tente imaginar o que é você estar caminhando e de repente escutar "La Traviata"? Um senhor anda na praia e canta tendo ao lado dele a esposa e um cão. Eles passeiam sob a melodia lírica enquanto a mulher chuta uma bola para o vira-lata que adestradamente salta e abocanha a bola no ar. Uma família realmente atípica e improvável que poderia ser de qualquer lugar, mas que é a cara de Búzios. 

Pelo visto, pode-se até afirmar que a praia é o local onde tudo pode acontecer, inclusive o mar jogar um futebol. Sim, isso não é absurdo, é real, e como. Em um dos costões da praia havia um grupo jogando uma descontraída pelada. Eu, como admirador do esporte bretão fiquei a observar ao longe a acirrada peleja, onde as únicas marcações eram as das balizas, imperfeitamente assinaladas por chinelos dos jogadores. Tudo estava fluindo bem, até o momento em que um dos jogadores foi lançado em profundidade e ele correu agilmente para matar a bola e poder oferecer aquele perigo de gol ao time adversário. Que o improviso é a principal marca do futebol brasileiro isso todo mundo está careca de saber, agora, que o mar também possui esse traço é que é a novidade, pois logo que matou a bola o jogador foi surpreendido por uma onda que o desarmou com toda a destreza possível, para logo depois o driblar e entregar a bola para o time adversário. O único problema causado por esse estranho lance da natureza foi que o jogo teve que ser interrompido para uma discussão. Até que se provasse ao contrário o mar tinha um lado, o que fez um time ter um integrante a mais. Queria muito ver até onde essa confusão iria, mas precisava continuar minha caminhada.             


O que para muitos pode ser um simples passeio à beira-mar ou mero caminhar despretensioso, para o cronista pode ser uma refeição deveras suculenta. O cronista é um admirador do mundo, que se realiza sem realizar nada de concreto, apenas ele espera a ação alheia, se realiza assim, pelo outro. Ainda há pouco eu comparei o cronista com o fotógrafo a esperar a foto lhe desenhar à frente. E não é que eu esbarrei com dois tipos de fotógrafos mesmo? Um primeiro, um típico amador, na verdade um literal amador a tirar fotos da amada. Ela caminhava da areia para o mar, voltava do mar para a areia, fazia caras e bocas, poses sensuais, enfim, exibia-se para ele, posava como uma forma de flerte. Fiquei a imaginar como terminaria todo aquele animado frisson entre eles. Como já se pode reparar, imaginação é outro traço forte do cronista. Mas olha que sem graça, eis que chega um outro fotógrafo, agora mais profissional, com tripé, câmera potente e colete especial. Ele arma o seu tripé e alheio às famílias, casais, animais e ao cronista, se põe a fotografar os barquinhos coloridos da enseada. Esse ato (meio agressivo de impor o equipamento de maneira inconteste) me fez rever a aproximação que fiz acima entre um cronista e um fotógrafo. Pois eu também estava lá a mirar e registrar tudo, talvez com mais afinco ao ato de registrar do que ele, porém, minha discrição era tal que ninguém podia me nomear como um cronista, já dele não se pode dizer o mesmo, chegou lá todo exibido, quase que se oferecendo a todos. Notei o quanto talvez o cronista seja desonesto, por não a alarmar ninguém sobre o seu ofício. Me senti contraditoriamente um privilegiado e um trambiqueiro a roubar o bem mais precioso daquelas pessoas, a sua vida. 

Mas não pense que tudo são eternas flores na vida de um cronista. Depois de um dia emocionante, repleto de acontecimentos cotidianos pitorescos, voltei ávido no dia seguinte com a perspectiva de encontrar mais aventuras e causos inusitados para observar e narrar naquela praia tão aprazível e convidativa. Porém, depois de andar por mais de duas horas não observei mais nada de interessante por lá. Tudo que vi foram casais sem graça tomando banho de sol, olhando o maldito celular ou andando placidamente pela curta faixa de areia, que tão bem caracterizam a Praia da Ferradura. Voltei mais um dia e depois mais outro e tudo continuou na mesma. Fiquei a refletir: o problema estaria nos míseros acontecimentos ou estaria no olhar do cronista que não conseguiu captar alguma magia da vida que rondava por lá?

*Walter Benjamin descreveu o flâneur como a figura essencial do espectador urbano moderno, um detetive amador e investigador da cidade. Mais do que isso, seu flâneur era um sinal da alienação da cidade e do capitalismo.

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