Diz-se que cada ser humano é um universo em si, embora o mesmo possa ser dito também de um lugar qualquer, por menor que ele seja. Penso aqui em um quintal, um gracioso quintal. Poderia dizer até que é um jardim, mas qual seria a diferença entre um e outro visto que essa diferença possa ser ínfima, ou mesmo de difícil precisão? Talvez a diferença seja mais organizativa do que de forma, já que em um quintal cabe um jardim enquanto o inverso jamais seria possível. Um quintal é anárquico, uma balbúrdia, uma festa de vida e alegria, nele cabe um universo, ou melhor conforma-se um universo. Ali tem tudo, coabitam famílias de bichos, invasores diversos e a escuridão, o mistério noturno. Nele há um desenho cubista traçado por árvores frutíferas portentosas a ofertar suntuosas sombras nos dias de calor. Meu quintal é assim, receptivo e convidativo, prestes a me sorrir com uma manga, uma acerola ou um cajá-manga. Nos dias mais festivos me brinda com um limão galego para uma caipirinha relaxante com os amigos.
Pela manhã, quando uma lufada de vento vem e balança suas folhas e plantas tudo parece ganhar uma nova vida, faz-se um bailado sem sincronia e as folhas lembram cabelos a balançar numa tarde à beira-mar. Se tudo que está ao nível das folhas revela-se lindo, uma obra de arte a ser contemplada numa rede que vem e que vai numa aprazível vertigem, o mesmo não acontece no chão, ou melhor, na terra. Lá as folhas se acumulam, os galhos mal formados e frágeis, sem falar nos frutos estragados embolados aos já quase putrefatos. Que fique claro: as frutas pertencem primeiro aos pássaros, a nós cabe apenas o que eles não aguentarem comer. Essa é a lei básica que move a selva de um quintal e a ela não se deve contestar ou mudar. Nele, o homem é um ser inferior em meio aos majestosos bichinhos e plantas que ali estão. A cor, o movimento, as texturas, a arquitetura pertence a cada um deles e aqui devemos nos colocar como ideais trabalhadores submissos a serviço de sua beleza e esplendor. Quando tudo estiver seco nosso dever é lhes dar a água para que não morram secos. Quando tudo estiver em excesso, devemos ir lá e podá-los para que cresçam mais belos ainda. Essa é a nossa função e por aí acaba nossa participação. Devemos perante a eles ser humildes e entusiásticos apreciadores e isso já é muito, muito mesmo.
Além da beleza dos frutos a colorir o ambiente, tem ainda os serelepes passarinhos a saltitar de galho em galho a alegrar cada nova contemplação, com movimentos rápidos que nos forçam a sistematicamente a buscar sua localização. Os pássaros são realmente os maiores protagonistas desse universo que é um quintal. Eles que nos chamam a atenção quando estamos distraídos com outros afazeres com a proeminência e agudeza de seus cantos, cada um com o seu, mas todos sempre muito agradáveis e admirados. Contemplar um canto de pássaro é algo contumaz inspirador, cada trinido ecoado nos faz pensar que existe seres além de nós, que colorem a vida com seu mero existir. Faz-me pensar nessa escrita, necessariamente aquém do seu objeto, e que por isso corre atrás do prejuízo, em um exercício de superação sem igual. Mas esses seres nos insistem a mostrar que a beleza existe e ela não está somente em nós e sim também nessas preciosidades que a natureza nos oferta assim de bandeja. Diferentemente da lua, uma exibida por natureza (ainda bem que as nuvens volta e meia a encobre), os pássaros precisam ser vistos e apreciados por entre folhas e galhos, normalmente ao longe, se eles não cantam não os localizamos, esse é o mistério deles. Nenhum ser representa mais a liberdade quanto eles e isso é mágico, esse poder de voar e ir de um lugar ao outro com relativa facilidade, de atravessar ruas, florestas e rios em um piscar de olhos. Por isso, alimentam igualmente nosso sonho de liberdade, nos instigam a ser como eles, a voar e poder mudar rota e destino em um estalar de dedos. São ou não são seres especiais esses pássaros?
Se o universo do quintal fosse um estúdio de cinema (embora não deixe de ser), as "stars system" seriam as borboletas. Aparentemente elas surgem do nada, mas não é bem assim. O horário preferido delas é o do meio do dia quando a luz está no seu auge. Elas são assim mesmo, estrelas que precisam de luz, de muita luz para brilharem soberanas, como se veramente precisassem mesmo de todos esses holofotes para serem rainhas da beleza. Basta elas aparecerem para dominar a cena com seu bailado hipnotizador a passar por nós com uma graça que só os seres inatos dela possuem. E as cores que elas emanam vão se espraiando pelos nossos olhos que as seguem enternecidos. Elas merecem um haicai só pra elas. Para mim, as borboletas nasceram para serem retratadas nos haicais, afinal elas são a síntese da beleza da natureza, são fugazes como toda beleza assim o é. São perfeitas, breves e mais ainda inatingíveis. Jamais vi matarem uma sequer, quem ousaria matar a própria beleza? No quintal, elas são as turistas maravilhosas, vem e vão sem cerimônia, emprestam beleza ao universo e deixam a sorte para quem avistou uma delas, ou várias delas, pois elas volta e meia surgem em bando e impõe o paraíso tal como ele deveria ser. Pra elas, humildemente ofereço um haicai:
Borboletas amarelas vem e vão
Turistam pelo farto quintal
Meu olhar as visita
Um quintal perfeitamente arborizado está ali para ser visto, com todas essas maravilhas. Tal como observamos uma tela de Picasso, Monet, Djanira, Frida Khalo, ou uma foto de Pierre Verger, e tantos outros artistas sensacionais, também podemos fazer com um quintal, tal como uma obra de arte, uma espécie de natureza viva. Mas diferentemente do quadro, o quintal pode ser vivido, tal como uma arte contemporânea também pode vir a ser, e que o diga o genial Hélio Oiticica, com seus penetráveis, em especial, lembro da obra de 1967, intitulada "Tropicália" (inspirador para o nome do famoso movimento cultural), onde o artista convidava o público a adentrar em um universo envolto pela terra, pedras e árvores, uma maneira de nos reconectar com uma origem, um viver com os pés na terra quente. Claro que havia uma crítica ferrenha dele a esse mundo de concreto frio que foi edificado pelo homem moderno, um modo vivencial e questionador por meio da experiência do que perdemos com o progresso do cimento, do asfalto e do ferro.
No mundo insensível de hoje, cultivar um quintal é em si um poderoso ato de resistência, pela possibilidade de se resgatar características primitivas e ancestrais que foram suprimidas em nome de uma vida próspera e egoísta. Entretanto, que fique claro e evidente: o quintal é muito mais que isso, ele é um complexo de vida que pulsa independentemente da nossa vontade humana. Nele habitam e coabitam bichos que a nossa consciência só vai permitir conhecer quando nos pomos a adentrar nele. Formigas, besouros, abelhas, marimbondos e tantos outros estão ali estabelecendo seus mundos, seus universos muitas vezes tão bem arquitetados quanto o nosso. Portanto, vivenciar um quintal pode ser traumático, violento e até dolorido, pois a profundeza dele é ilimitada e desconhecida. O quintal é um universo político por natureza (literalmente aqui), e cabe a nós sermos sabedores disso para podermos politizar nossa vida com o que há de melhor, a política dos quintais, sendo agregadores e violentamente precisos como eles.
Espero que em um mundo tão acinzentado pelo concreto sem graça e cor, não estranhe o fato de um mero cronista de ocasião possa discorrer sobre um universo dominado pelo verde e outras cores tão vívidas de um quintal. Cronista de ocasião? Que situação seria essa? Dizem que a ocasião faz o ladrão e o cronista é esse sujeito justamente interessado em roubar o acontecimento do alheio. Sob essa perspectiva, todo o cronista é de ocasião ou faz dela algo de imprescindível para a sua criação, a usando como uma espécie de matéria-prima de seu flutuante ofício. Por mais baixa que seja a estatura artística do cronista, o seu amor pela palavra é tão cruciante quanto para um Joyce ou um Dostoiévski, que por sua vez não deixam também de ser também cronistas do seu tempo. Tudo isso para dizer o quanto é vital, potente e necessário para esse cronista falar desse quintal, embora o mesmo não pertença a ele, a não ser quando ele o aluga de alguém. O quintal é uma espécie de utopia, desse não lugar, porque ele nunca será de ninguém, pois jamais uma escritura será capaz de aprisionar um quintal. Os verdadeiros donos dele sempre serão os bichos, as plantas, as árvores, as frutas, além do nosso olhar maravilhado sobre ele. Sim, o nosso olhar pode até se render a ele, já nós, como pessoas, não. No mundo, a perfeição será sempre uma utopia e o quintal um propriedade privada de todos os seres que habitam ele.
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