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Músicas que habitam em mim n° 3 Calabouço


Música e política - Parte 1: Sergio Ricardo e o cala-boca do Calabouço

Sempre fui extremamente ligado em política, de tal forma que nem lembro como esse elo começou, embora intuitivamente eu desconfie que essa minha relação primordial está fortemente entrelaçada com a música. Meus pais militavam na política e como desdobramento a música com um viés político estava no espectro de atenção deles, e assim, em casa ouvíamos LPs de artistas como Geraldo Vandré (1968), Sergio Ricardo, Carlos Lyra e um disquinho do CPC da UNE (ver ilustração abaixo) que tinha uma música, que ouvida hoje beira até o cômico, mas que à época eu achava o máximo: "Subdesenvolvido" (1) Carlos Lyra - Canção do Subdesenvolvido - YouTube.      

Na altura do campeonato, os leitores já puderam sentir que a força da presença da música na vida de cada um (no caso em mim) é o tema maior desta coluna, de como ela evoca lembranças e doces tempos já vividos e por mais que as experiências musicais sejam extremamente pessoais tudo parece ter uma conexão bem mais ampla do que imaginamos a princípio. As pessoas leem esta coluna e a seguir narram fatos de suas vidas, e o que era extremamente pessoal torna-se emaranhadamente coletivo. A música carrega esse mistério, essa estranha e inequívoca magia, a de significar muitas coisas, rememorar muitas outras e relacionar-se com uma infinidade de temas e sentimentos. Agora, imagina a música se misturando explicitamente com a política. Em alguns momentos comigo foi assim, e de repente, as fronteiras se confundiram de maneira pra lá de intensa, mas jamais sem perder a ternura. 


Esse capítulo especial, que dividirei em duas partes, lembrarei do músico, poeta, pintor e cineasta Sergio Ricardo, cujo disco de 1973 mostrava logo na capa, expressivamente desenhada pelo cartunista Caulos, de uma pessoa subtraindo a boca de Sergio Ricardo de seu rosto (ver imagem de abertura desta coluna), em referência direta à censura política imposta pelo governo ditatorial militar da época. Esse certamente foi um dos discos mais influentes da minha vida, o que mais me acendeu a consciência política e a necessidade de lutar por um mundo mais justo e livre. Mas não foram só as letras que gritavam nessa catarse musical, os arranjos das canções também entoavam uma sonoridade marcante, de uma época bastante especial, onde a denúncia das letras não abafavam a riqueza musical. Graças sobretudo a esse disco, Sergio Ricardo amargou um triste e cruel isolamento cultural. As grandes emissoras de TV passaram a boicotar abertamente as suas músicas e discos futuros. O ápice dessa exclusão, ou da ratificação dela, ocorreu em 1992, quando a Rede Globo criou a série "Anos Rebeldes" e não selecionou uma música sequer de Sergio Ricardo para compor a trilha sonora, mesmo ele tendo composto várias emblemáticas durante esse período sinistro da nossa política. Sergio Ricardo sofreu um duro processo de apagamento midiático e foi morar no Morro do Vidigal, comunidade fincada no Leblon, uma área rica de nossa cidade, onde se transformou em uma liderança contra diversas ordens de despejo de moradores. Essa luta virou um samba em outro LP, chamado "Do lago à cachoeira" (1979), intitulada "Vidigal": No Vidigal tem uma turminha de bamba / Que não esquenta com as ameaças do rei / Se vem o mal toda favela se levanta / Seja lá quem for se espanta /Se vem tirar chinfra de lei / Sua tramoia já sei de cor / Só porque tem seu seu poder / Pensa que pode mais que um sofredor / Tramar tramou / Mas se derrubou não se brinca com o poder que o poder do povo é bem maior" Deixo o link do Spotify para quem quiser ouvir a canção.

Vidigal • Sérgio Ricardo (spotify.com)                                                               

A força de Sergio Ricardo na minha vida foi tal, que em 2002, como projeto de conclusão do curso de cinema, propus realizar o documentário "Enquanto a tristeza não vem", que foi devidamente finalizado e exibido em circuito de festivais e hoje pode ser visto no Porta Curtas Enquanto a Tristeza não Vem (portacurtas.org.br). O desejo de fazer esse curta vinha de um acerto de contas com a minha memória musical e o peso que Sergio Ricardo tinha nela. Me deixava bem chateado o quase anonimato em que Sergio Ricardo se encontrava, depois de uma carreira brilhante, que havia passado pela Bossa Nova, a música de protesto, a música regional do Nordeste, entre outros trabalhos expressivos que se perdiam em um dos grandes apagamentos midiáticos do Brasil. Pensei em chamar o curta que produzia de "Quem matou Sergio Ricardo?", pois toda vez que procurava alguém para falar do filme me perguntavam se ele já havia morrido, e a mim tudo isso machucava muito, ver um ídolo musical cair em um ostracismo tão violento, mas o viés sensacionalista do título me fez desistir. Claro que as respostas das pessoas não era em vão, nelas residiam uma verdade, a de que se você é um artista em uma Era midiática e não é executado, a morte é imediatamente lhe é associada. O que Sergio vivia era sim uma forma de morte, cujos assassinos estavam bem nomeados. Cheguei a pensar em realizar à época um novo curta assumindo o nome "Quem matou Sergio Ricardo?", onde eu numa primeira parte perguntaria sobre ele para diversas pessoas para ouvir o que sempre ouvi: Sergio Ricardo já morreu, né? Depois pensei em começar uma investigação para saber o porquê de Sergio não tocar mais nas grandes mídias brasileiras, ir perguntar para os responsáveis pelos programas sobre essa exclusão deliberada, assim como almejava ainda procurar intelectuais e militantes políticos da cultura para responderem a fatal pergunta.


Mas voltando para o seu LP de 1973, o tal que remete à censura, é difícil para mim esquecê-lo, afinal ele foi basilar na minha formação intelectual e de rebeldia perante ao sistema político vigente. Esse LP teve uma importância fundamental na própria carreira de Sergio Ricardo, basta lembrar que o compositor vinha de uma tradição bossanovista de canto, muito lapidado pela vivência no famoso Beco das Garrafas em Copacabana. Mas vale lembrar que em 1963, uma determinada experiência mudaria sua vida, a de compor a trilha musical para o filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha. A música de Sergio encaixou com precisão nas pretensões do assertivo diretor baiano, embora na hora de gravar as músicas as coisas ficaram bem complicadas. Glauber queria que Sergio cantasse "Antonio das mortes" berrando, e Sergio mesmo desconfiado e a contragosto seguiu as ordens do incisivo diretor. Hoje música e filme estão imortalizados na película de Glauber. O resultado está no próprio LP de 1973, cuja atmosfera nordestina propiciou a inserção tardia da belíssima música do filme. Esse LP de 1973 soou para mim como uma espécie de cartão de visitas à música vinda do nordeste brasileiro. Veja a ironia, Sergio era da cidade de Marília (SP) e minha paixão pela música do nordeste me chegou por esse caminho curiosamente torto.

Esse LP de 1973 resgata uma memória cristalina da minha vida estudantil na Escola Municipal Affonso Penna, na Tijuca, bairro em que eu morei no início dos anos 1970. Foi na escola onde pude vivenciar como era o dia a dia em um regime ditatorial: ouvir às 7 da manhã o hino nacional com todos os alunos torturadamente perfilados para o hasteamento diário da bandeira. Também lembro bem das aulas de música em que ficávamos o ano inteiro decorando o hino nacional, o hino da bandeira e outros, enquanto a música mesmo passava longe das aulas, com a predominância de um patriotismo barato e vazio vindo dos militares, o que me despertava uma grave sensação de sufocamento, principalmente porque escutava diariamente protestos ferozes contra os generais golpistas na minha casa. 



Devido questões políticas envolvendo a militância dos meus pais, tínhamos um cotidiano bem controlado. Meus pais não gostavam de se expor nas ruas, e tão pouco deixavam eu e meu irmão sair sozinhos de casa, nem mesmo se fosse para ver um filme no cinema na agitada e tão próxima Praça Saens Peña era possível. Mas lembro de quando fui sozinho, já com os meus 15 anos, assistir no Art Palácio Tijuca ao filme "Lagoa azul" (1980) e fiquei impressionado com a beleza da atriz Brooke Shields. Lembro que esse filme me marcou muito à época porque os personagens tinham a minha idade, e eles na história, viviam uma vida de liberdade, aventuras e prazeres, inclusive sexuais. Na história, eles eram duas crianças náufragas que chegam sozinhas em uma ilha paradisíaca, o que a princípio era algo aterrorizante (pois eram crianças), com o passar do tempo e com seus crescimentos, logo tudo virou uma experiência fantástica, de uma vida sem família, igreja, escola e outras obrigações insuportáveis. Era ou não era uma sessão da tarde dos sonhos para um jovem de 15 anos? Me lembro bem de como foi difícil sair daquele escuro e reconfortante ambiente da sala de cinema e encarar as ruas novamente, voltando para a minha vidinha de acordar cedo, ir à escola, fazer deveres de casa, dormir e começar tudo de novo no dia seguinte. 


Como minhas aulas de música na escola eram insuportáveis, os LPs comprados pelos meus pais tornavam-se minhas melhores aulas musicais à época. Mas aqui há algo que ainda não registrei, mas vale muito assinalar e demarcar: de que na minha casa se ouvia basicamente música brasileira, o que condicionou muito a minha audição. Havia exceções a músicos negros norte-americanos, como Isaac Hayes e Richie Havens, em luta por direitos civis, assim como meus pais tinham o disco duplo do icônico Festival de Woodystock, francamente um manifesto contra a Guerra do Vietnam, cuja gravação estava longe de ser um primor, mas que trazia uma energia revigorante, havia algo de mágico que estava para além daqueles sons, talvez um ambiente de liberdade que pairava ali e extrapolava pelo som das caixas acústicas. A militância política dos meus pais delimitou (ou limitou?) meu ouvido musical, em uma época sem streaming e que o acesso à musica era bem mais reduzido do que hoje. Eu ouvia sistematicamente que os poderosos Estados Unidos impunham sua música alienante ao mundo pobre, subdesenvolvido, tal como também eu ouvia nos discos do CPC da UNE, o que me fazia afastar automaticamente dela. Eu só comecei a ouvir música estrangeira com mais frequência muito mais tarde, já na vida adulta, e jamais ela se tornou viciante, talvez com uma única exceção, a dos Beatles, mesmo que muito tardiamente. 

Nessa minha infância marcada pelo início dos estudos, eu e meu irmão usávamos uma cabeleira lisa e extremamente loira que incomodava a direção da escola. Bem, a minha rebeldia foi encorajada por essa perseguição que chegava a níveis insuportáveis, meus pais eram chamados na escola para justificar nossos cabelos e para constrangê-los a cortar nossa graciosa jubinha à la Björn Borg, o famoso tenista sueco da época. Meu estilo era mais para o desaforado, adorava um palavrão e não deixava em paz a professora de religião (que embora fosse matéria optativa, nos obrigavam a assistir). A pobre mulher, que não lembro o nome, penava comigo que arremessava bolinhas de papel no quadro negro enquanto ela tentava escrever algo bíblico. Meus pais foram chamados à escola e tudo ficou bem difícil quando a minha família declarou não só a ausência de uma religião como também o ateísmo. Tudo foi enfim resolvido com a nossa liberação das aulas de religião, que já poderia ter evitado a todos os aborrecimentos causados pela falsa obrigatoriedade dessas aulas. Nós e a professora ficamos aliviados ao final. 

Assim como a vida política sempre esteve presente em minha vida, os discos políticos também habitaram e habitam em mim e por mais que eu possa resistir a isso, são eles que mais se encruaram e firmaram em mim como uma tatuagem, como bem cantou Chico Buarque certa vez: "quero ficar no teu corpo feito tatuagem, que é pra te dar coragem, pra seguir viagem, quando a noite vem". Sergio Ricardo, Chico Buarque, Elis Regina, Vandré, Taiguara e tantos outros, tomaram meu corpo por inteiro, tanto que a qualquer acorde de suas músicas algo mexe com minhas vísceras, faz meu coração palpitar e vez por outra faz alguma lágrima furtiva descer pelo rosto. A fonte do prazer é algo misterioso a ser decifrada, pois ela pode habitar nas profundezas do corpo e da alma, atrair alegrias e tristezas de uma só monta. Talvez assim mesmo sejam as artes a nos arremessar no caótico e de lá tentar nos salvar com alguma beleza de lá. E como hoje estamos poderosamente a precisar dessa força estranha vinda das artes. Quem sabe, tudo realmente já está escrito e cabe a nós somente reinterpretar cada som, cada imagem real ou imaginária que reside em nós e no mundo. Por enquanto, vou ficando com os versos de "Semente", de Sérgio Ricardo, a sintetizar tão bem minhas atuais sensações e buscas: "Cada verso é uma semente / no deserto do meu peito / e onde o verde não verdeja / não deito o meu desalento."    

Comentários

  1. Como é bom acrescentar aos meus saberes essas suas reflexões que ampliam as minhas e que valeu a pena por esye para sempre. RF (e SF)

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