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BELCHIOR: APENAS UM CORAÇÃO SELVAGEM (2022) Direção de Camilo Cavalcanti e Natália Dias


A beleza de um mito que se impõe pela própria grandeza 

Depois de assistir a tantos documentários sobre cantores e cantoras populares por aí, confesso meu profundo desânimo quando anunciam um novo trabalho baseado nessa mesma ideia. Mas eis que "Belchior: apenas um coração selvagem" vem a redimir esses formatos biográficos de antes. O diretor Camilo Cavalcanti e a diretora Natália Dias fazem uma obra cirúrgica, nevrálgica e potente sobre um dos maiores mitos da nossa música, o rebelde compositor e cantor cearense Belchior. Tudo é tão preciso e ao mesmo tempo de grande profusão artística. Um dos méritos da direção é saber ouvir o material que tinham em mãos, de transformar o filme na própria voz de Belchior. 

Chama muito atenção a montagem do experiente documentarista Paulo Henrique Fontenelle, que consegue dosar música, temporalidade, depoimentos sem jamais ser didático, ou óbvio, e sem perder de vista a condução narrativa do próprio Belchior, sendo cantando ou falando de maneira direta e clara sobre o seu trabalho, o que é muito raro entre os artistas em geral. A convicção do compositor cearense de que a música era um caminho propício para passar mensagens ao público, onde o pensamento crítico devia se sobrepor às emoções é uma delícia de se ver. A crueza da poesia de Belchior se acentua quando ouvimos Silvero Pereira (famoso por interpretar o personagem Lunga em Bacurau e Zaquieu na nova versão da novela "Pantanal") salientando a lâmina visceral dos versos a nos cortar a consciência como se nos ferisse no fundo de nossa alma. Apenas essa narração poética e um depoimento de Elis Regina sobre a obra de Belchior fazem o filme desviar da condução do próprio Belchior, mas esses poucos elementos exógenos são tão fortes que fazem valer muito essas pontuais interrupções narrativas. O estranhamento da voz rouca de Belchior torna-se uma textura fundamental, nos atinge como a um encantamento pela originalidade, provocada pelo canto reto, certeiro e rascante desse artista único, sem igual na música brasileira. 


"Belchior: apenas um coração selvagem" consegue resgatar a essência e o carisma do compositor, sempre muito convicto em intenção e gesto. O filme não se prende a picuinhas, foca na carreira e no papel do artista na sociedade brasileira, na certeza de que estava expressando uma visão acerca de uma geração e na necessidade de não deixar os jovens sem ideais. Se um sonho morre, outro deve surgir, pois sem sonho a humanidade sequer existiria. Por isso, dar a voz ao artista e a sua música torna-se tão importante. A construção temporal do filme se faz com uma suavidade tal que não ficamos presos a ela, embora ela sempre esteja por ali alinhavada na narração.

Os depoimentos de Belchior esclarecem muitos detalhes sobre o o caminho artístico percorrido e ficamos intrigados o quanto ele foi coerente com suas ideias do início ao fim da carreira e da vida. Como ele dizia é o homem comum narrando as aventuras de viver, sem ilusões ou metáforas, a mensagem chegando seca aos ouvidos de todos. O filme desenha com exatidão a força que habita tanto na poesia quanto na música híbrida, sempre difícil de definir, entre o canto sertanejo, o brega e o pop internacional, o toque "Beatles" e o lamento nordestino do baião de Gonzaga, Jackson e João do Vale. Uma música que se colocou entre o fenômeno tropicalista e a invasão do pop inglês e o folk dos Estados Unidos, que se situou criticamente em relação as metáforas e alegorias que impediam as canções a atingir o âmago das problemáticas humanas. 


Versos como "'A minha alucinação é suportar o dia a dia, e o meu delírio é a experiência com coisas reais" (Alucinação); "Eu quero que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês" (A Palo Seco); "Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro" (Sujeito de sorte); "Mas não se preocupe, meu amigo com os horrores que lhe digo, isto é somente uma canção, a vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior" (Apenas um rapaz latino americano); "E a única forma que pode ser norma, é nenhuma regra ter, é nunca fazer nada que o mestre mandar, sempre desobedecer, nunca reverenciar" (Como o diabo gosta) e "Mas veio o tempo negro, e a força fez comigo o mal que a força sempre faz, não sou feliz mas não sou mudo, hoje eu canto muito mais" vão tomando a tela, a preenchendo com um vigor inequívoco. O filme de Camilo e Natália a todo o momento nos joga isso na cara, a palo seco, como o diabo Belchior adoraria que eles fizessem. Tudo é cru, direto, claro e potente, pois deixa que a voz clarividente do compositor fale e grite o canto torto que tanto cantou. São músicas tão coerentes que parecem compor um disco único gigante e visceral.

E para não deixar passar em branco. Tem Elis Regina sim, no que talvez tenha sido seu momento mais radioso, mais impactante, quando ela faz o performático show "Falso brilhante" (1976) e traz para o mundo a música rascante de Belchior. Ouvimos ela cantar plenamente "Como nossos pais", em uma interpretação ao vivo e como dizia Belchior, "ao vivo a vida é muito pior" e os pelos que se cuidem pois restam a eles se ouriçarem e cabe à pele apenas se arrepiar. A potência de Elis a transformar a canção meio folk na gravação dele em um "roquenrou" de balançar os quadris mais enrijecidos do planeta e revelar o quanto roqueiro era Belchior, pois em "A velha roupa colorida", o mesmo acontece e de maneira mais radical ainda. Como esquecer dos versos lancinantes da canção "Como nossos pais" ao nos dizer "Já faz tempo eu vi você na rua, cabelo ao vento, gente jovem reunida, na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais". e ainda "Minha dor é perceber, que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais". Uma poesia de doer até as entranhas.      


Para aqueles que querem assistir ao filme pensando que poderá ter acesso a informações inéditas sobre o final da vida de Belchior, alerto que não vale a pena esperar por isso. O filme aborda sim esse final, mas o faz como um fechamento coerente do músico frente a tudo o que sempre acreditou e defendeu nas canções que compôs na longa carreira. E esse é mais um detalhe fundamental que só eleva mais ainda a abordagem da direção, que não aceita o sensacionalismo no qual o tema foi tratado pela grande mídia. O resultado da coerência de Belchior perante a arte e vida o alçou a uma espécie de mito da contemporaneidade. As letras de suas músicas extrapolaram os meios convencionais de se ouvir música e ganharam os muros, as camisetas e outros lugares que nem temos mais como imaginar. Em um mundo sem utopias e sonhos, as canções de Belchior parecem preencher um vazio existencial em um momento em que o país se vislumbra como distópico, sem rumo e a existência cultural desmorona à nossa frente. Se isso não é ser atual, eu não sei mais o que pode vir a ser. Mais do que um grande filme, esse é mais um clássico que nasce para o nosso expressivo cinema documental. 

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