O encontro de Woody Allen com seus ídolos cinematográficos
Texto de Marco Fialho
Mas o anúncio de "O Festival do amor" encheu de esperança o séquito de fãs do cineasta, embora precisemos reconhecer que sem aquele frisson de antes. Se o filme não impressionou como alguns esperavam, pois a fórmula dos últimos vinte anos está ali bem visível (a narração leve e palatável, a presença de um alterego, romances improváveis com pitadas cômicas e enredos muitas vezes filmados fora dos Estados Unidos), há um elemento pelo menos que faz a obra atrativa, e porque não dizer, irresistível, que é a explícita homenagem que Allen faz para a história do cinema, uma declaração de amor à cinefilia.
Essa homenagem de Allen ao cinema é inserida meio como citação, meio como sonho do protagonista, isto é, como interação à história. Os trechos marcantes dos filmes escolhidos para serem incorporados à trama, muito dizem acerca tanto da formação quanto das preferências cinematográficas de Allen. O filme se passa na cidade costeira de San Sebastian durante o famoso festival internacional de cinema que anualmente acontece por lá, o que caracteriza outra homenagem cinematográfica explícita incorporada à trama.
Mesmo que as inserções dos filmes soem às vezes muito forçadas, pela maneira abrupta que adentram na história, são elas o elemento mais interessante de "O Festival do amor". A cada vez que um memorável filme é introduzido ficamos nos perguntando qual será o próximo a ser reencenado por Allen. Logo de cara temos o filme considerado o mais importante de todos os tempos, a obra-prima "Cidadão Kane". Allen escolhe a cena da infância de Kane para discutir a de seu protagonista, Mort Rifkin (Wallace Shawn). A partir de então outros clássicos indiscutíveis vão se intercalando, cada um discutindo um aspecto da história do protagonista. "Oito e meio", "Morangos silvestres", "Persona", Um homem, uma mulher", "Jules e Jim", "Acossado", "Um anjo exterminador" e "O sétimo selo" surgem na tela para o deleite da plateia. Essas releituras inspiradas nos mestres do cinema são deliciosas e ganham uma amplitude devido a fotografia luxuosa e competente em preto e branco de Vittorio Storaro.
Uma das inserções mais inusitadas é a de "Acossado", de Jean-Luc Godard. O filme não entra na vida dos personagens em um sonho do protagonista, como de praxe ocorre na história, mas sim adentra pela própria experiência do protagonista ao assistir a obra no cinema, uma pequena brincadeira com o tão citado jargão de que "cinema é sonho". Vale lembrar que a carreira de Allen está a comprovar a sua paixão pelo cinema e as artes em geral. Em "Meia-noite em Paris" (2011) o protagonista vivido pelo ator Owen Wilson viaja no tempo para encontrar artistas que transitavam pela vanguarda francesa no final dos anos 1920. Dalí, Toulouse-Lautrec, Picasso, Hemingway, Scott Fitzgerald, Gertrude Stein e pasmem, Luis Buñuel, também homenageado em "O Festival do amor", perfilavam garbosamente na tela. Allen já havia trabalhado com o cinema como tema em outros dois filmes: em "A rosa púrpura do Cairo" (1985) e "Dirigindo no escuro" (2002); o primeiro uma obra-prima, já o segundo, um de seus filmes mais decepcionantes, apesar da ideia ser fantástica.
O cinema também está presente na trama por meio do personagem de Louis Garrel, um pernóstico diretor de cinema. Allen deixa a entender que não se afina muito com o cinema feito hoje em dia, onde a pose dos realizadores impera mais do que a competência artística. Pode até ser um mal-entendido da minha parte, mas essa é a impressão que tive ao assistir "O Festival do amor". Apesar do filme passar em um festival de cinema, vemos poucas cenas passadas nele (bom lembrar que Allen não é muito chegado ao clima competitivo dos festivais), apesar do protagonista (o alterego de Allen) ser professor aposentado de cinema, embora explicite a todo instante também não gostar do cinema atual, apenas dos clássicos. Como na trama a esposa dele (Gina Gherson) trabalha na promoção de filmes, ele vai de acompanhante, isto até conhecer a médica Joana (a ótima Elena Anaya, famosa por protagonizar "Na pele que habito"), pela qual fica encantado e passa a arrumar pretextos para encontra-la. Essa trama desvia totalmente o protagonista Mort das festividades cinematográficas e abre caminho para a infidelidade da esposa. Note-se que o título original está relacionado explicitamente a esse fato: "Rifkin's Festival", isto é, a festa e o delírio vivido pelo protagonista.
Se "O festival do amor" não é o melhor Woody Allen que o público verá, também está longe de figurar entre os mais fracos. Muitos podem dizer que o tempo envelheceu a alma do diretor. Pode até ser, o que explica algumas repetições de fórmulas de seus últimos projetos (com exceção de Roda Gigante, seu último trabalho espetacular), um preguiçoso e eterno mais do mesmo. Mas não tem como não ver como positivo o fato dele estar em plena atividade aos 86 anos, que há uma beleza nisso. O ato de colocar o seu alterego Rifkin no divã para narrar a história é muito significativo que uma autoanálise está no ar. Allen sabe (mesmo que seja inconscientemente) que precisa se renovar e a pergunta final dele para o analista deixa uma pista. Ficamos a pensar que depois de escrever a sua autobiografia alguma mudança pode está por acontecer. Será? Só o tempo dirá...
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