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O FESTIVAL DO AMOR (2021) Direção de Woody Allen


O encontro de Woody Allen com seus ídolos cinematográficos

Texto de Marco Fialho

Na autobiografia lançada recentemente, Woody Allen fala muito da dificuldade crescente dele em produzir novos projetos nos Estados Unidos devido aos processos impetrados por Mia Farrow, que o acusa de atos de pedofilia em relação a filha adotiva Dylan. O cancelamento feito pelo movimento #MeToo o atingiu em cheio. Logo ele, que talvez seja o cineasta mais profícuo em realizações, conseguindo dirigir pelo menos um filme por ano desde o início da carreira, sem crises de inspiração ou algo do tipo. Mas a verdade é que desde "Roda gigante", em 2017, Woody Allen não consegue mais emplacar um filme por ano, mesmo que já tenha sido julgado e inocentado, a desconfiança e o cancelamento continuam em seu encalço. 

Mas o anúncio de "O Festival do amor" encheu de esperança o séquito de fãs do cineasta, embora precisemos reconhecer que sem aquele frisson de antes. Se o filme não impressionou como alguns esperavam, pois a fórmula dos últimos vinte anos está ali bem visível (a narração leve e palatável, a presença de um alterego, romances improváveis com pitadas cômicas e enredos muitas vezes filmados fora dos Estados Unidos), há um elemento pelo menos que faz a obra atrativa, e porque não dizer, irresistível, que é a explícita homenagem que Allen faz para a história do cinema, uma declaração de amor à cinefilia.


Essa homenagem de Allen ao cinema é inserida meio como citação, meio como sonho do protagonista, isto é, como interação à história. Os trechos marcantes dos filmes escolhidos para serem incorporados à trama, muito dizem acerca tanto da formação quanto das preferências cinematográficas de Allen. O filme se passa na cidade costeira de San Sebastian durante o famoso festival internacional de cinema que anualmente acontece por lá, o que caracteriza outra homenagem cinematográfica explícita incorporada à trama. 

Mesmo que as inserções dos filmes soem às vezes muito forçadas, pela maneira abrupta que adentram na história, são elas o elemento mais interessante de "O Festival do amor". A cada vez que um memorável filme é introduzido ficamos nos perguntando qual será o próximo a ser reencenado por Allen. Logo de cara temos o filme considerado o mais importante de todos os tempos, a obra-prima "Cidadão Kane". Allen escolhe a cena da infância de Kane para discutir a de seu protagonista, Mort Rifkin (Wallace Shawn). A partir de então outros clássicos indiscutíveis vão se intercalando, cada um discutindo um aspecto da história do protagonista. "Oito e meio", "Morangos silvestres", "Persona", Um homem, uma mulher", "Jules e Jim", "Acossado", "Um anjo exterminador" e "O sétimo selo" surgem na tela para o deleite da plateia. Essas releituras inspiradas nos mestres do cinema são deliciosas e ganham uma amplitude devido a fotografia luxuosa e competente em preto e branco de Vittorio Storaro.  


Uma das inserções mais inusitadas é a de "Acossado", de Jean-Luc Godard. O filme não entra na vida dos personagens em um sonho do protagonista, como de praxe ocorre na história, mas sim adentra pela própria experiência do protagonista ao assistir a obra no cinema, uma pequena brincadeira com o tão citado jargão de que "cinema é sonho". Vale lembrar que a carreira de Allen está a comprovar a sua paixão pelo cinema e as artes em geral. Em "Meia-noite em Paris" (2011) o protagonista vivido pelo ator Owen Wilson viaja no tempo para encontrar artistas que transitavam pela vanguarda francesa no final dos anos 1920. Dalí, Toulouse-Lautrec, Picasso, Hemingway, Scott Fitzgerald, Gertrude Stein e pasmem, Luis Buñuel, também homenageado em "O Festival do amor", perfilavam garbosamente na tela. Allen já havia trabalhado com o cinema como tema em outros dois filmes: em "A rosa púrpura do Cairo" (1985) e "Dirigindo no escuro" (2002); o primeiro uma obra-prima, já o segundo, um de seus filmes mais decepcionantes, apesar da ideia ser fantástica.                     

O cinema também está presente na trama por meio do personagem de Louis Garrel, um pernóstico diretor de cinema. Allen deixa a entender que não se afina muito com o cinema feito hoje em dia, onde a pose dos realizadores impera mais do que a competência artística. Pode até ser um mal-entendido da minha parte, mas essa é a impressão que tive ao assistir "O Festival do amor". Apesar do filme passar em um festival de cinema, vemos poucas cenas passadas nele (bom lembrar que Allen não é muito chegado ao clima competitivo dos festivais), apesar do protagonista (o alterego de Allen) ser professor aposentado de cinema, embora explicite a todo instante também não gostar do cinema atual, apenas dos clássicos. Como na trama a esposa dele (Gina Gherson) trabalha na promoção de filmes, ele vai de acompanhante, isto até conhecer a médica Joana (a ótima Elena Anaya, famosa por protagonizar "Na pele que habito"), pela qual fica encantado e passa a arrumar pretextos para encontra-la. Essa trama desvia totalmente o protagonista Mort das festividades cinematográficas e abre caminho para a infidelidade da esposa. Note-se que o título original está relacionado explicitamente a esse fato: "Rifkin's Festival", isto é, a festa e o delírio vivido pelo protagonista. 


Se "O festival do amor" não é o melhor Woody Allen que o público verá, também está longe de figurar entre os mais fracos. Muitos podem dizer que o tempo envelheceu a alma do diretor. Pode até ser, o que explica algumas repetições de fórmulas de seus últimos projetos (com exceção de Roda Gigante, seu último trabalho espetacular), um preguiçoso e eterno mais do mesmo. Mas não tem como não ver como positivo o fato dele estar em plena atividade aos 86 anos, que há uma beleza nisso. O ato de colocar o seu alterego Rifkin no divã para narrar a história é muito significativo que uma autoanálise está no ar. Allen sabe (mesmo que seja inconscientemente) que precisa se renovar e a pergunta final dele para o analista deixa uma pista. Ficamos a pensar que depois de escrever a sua autobiografia alguma mudança pode está por acontecer. Será? Só o tempo dirá...          



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