Pular para o conteúdo principal

MÚSICAS QUE HABITAM EM MIM - N°2 "Magnólia" (1974) de Jorge Ben


Coluna semanal de Marco Fialho 

MÚSICAS QUE HABITAM EM MIM - Nº 2 - Magnólia (Jorge Ben)

link para os LPs "A tábua de esmeralda" (1974) e "Solta o pavão" (1975) de Jorge Ben:



Uma pletora de alegria na Tijuca

A tarefa mais difícil para um ser humano era ser feliz em 1975 no Brasil tomado por uma horda sinistra de militares encruados em Brasília. Eu tinha meus 10 anos de idade e já começava a entender que algo de estranho acontecia a minha volta. Eu já havia retornado ao Rio em 1972, depois da minha bucólica, rápida e marcante passagem por Niterói e morava em uma curiosa casa no Andaraí, numa área que integra a grande Tijuca, bairro conhecido por revelar vários artistas no Brasil, inclusive o que vou comentar nessa crônica e que já já revelarei a todos. 

A luminosidade dessa casa tijucana foi fundamental para encarar a nebulosidade que ainda preponderava na política brasileira do início dos anos de 1970, ainda mergulhada no obscurantismo da ditadura. Para a minha felicidade, alguns discos dessa época vinham a somar à bela luminosidade da casa nova. A mão do acaso às vezes é bendita, pois foi nessa época que pude conhecer dois LPs de Jorge Ben: "A tábua de esmeralda (1974) e "Solta o pavão" (1975). Mais luz que isso era impossível em meio a um país que desabava aos meus olhos infantis. Tudo nesses discos soava como mágica para mim, letras que me seduziam mesmo não entendendo vários trechos delas à época incluindo aí os títulos incomuns, como "Errare humanum est". O homem havia chegado à lua em 1969, fato que modificou consideravelmente a nossa  visão da vida, assim como as possibilidades de nós terráqueos encarar o futuro. A televisão falava muito no assunto, mas não só ela. As artes foram deveras contaminadas por esse poderoso feito e Jorge Ben (atentar que ainda não era Benjor) talvez fosse quem mais falasse disso em suas músicas. Tudo que uma criança ama é de uma boa fantasia e o coro inicial de 'Errare..." funcionava como uma máquina de teletransporte para a lua e o universo desconhecido do espaço sideral. Já o som vindo dos acordes e melodias de "Errare..." forjava uma outra viagem com fortes poderes sensitivos, expandia a percepção, dilatava as pupilas e nos convidava para o espaço da imaginação, ao vagar pelo halo cósmico. Quando se está inserido em um sistema opressor só há dois caminhos: o de lutar e o de fugir. Porém, mesmo para quem escolhe a luta como caminho, precisa também extravasar em alguma hora e Jorge Ben preencheu maravilhosamente essa necessidade humana de fugir do real. Esses dois discos de Jorge Ben comunicavam exemplarmente com a minha casa tijucana, serviam como um farol direcionado à beleza em meio à escuridão dos Governos dos generais Médici e Geisel. 
        


Esse misterioso apartamento ficava em um curiosa ladeira fincada na montanha ao fundo do Sesc Tijuca, ao lado de uma pedreira que à época estava em atividade (tente imaginar o barulho das explosões), que hoje minha alma cinéfila abruptamente me remete ao filme "A pedreira de São Diogo" (1962), curta de exercício eisensteiniano, que marcou a estreia de Leon Hirszman, diretor que nutro profundo afeto ("São Bernardo" e "Eles não usam black-tie"). O curta de Leon estava inserido em um filme de episódios nomeado "Cinco vezes favela", um significativo exemplar do então nascente Cinema Novo e produzido pela UNE (União Nacional dos Estudantes). Vejam vocês, visualmente, minha casa era um apartamento, embora na prática era uma casa que perfilada com outras da montanha parecia que formava um prédio único (ver na imagem acima), que hoje se encontra bem castigada. O fato da casa ter sido construída no último patamar da montanha permitia que ela possuísse uma visão panorâmica do lugar, uma espécie de mansão do Drácula (evidente que sem a aura nobre e rica deste) a vislumbrar todo o bairro. Evidente que não era uma mansão (muito e muito longe disso) e sim um humilde cafofo em que um dos quartos dispunha de uma visão privilegiada porque a janela de vidro ocupava toda a extensão da parede (hoje infelizmente já modificada), um luxo inacreditável, mas que era vivido sem a devida consciência do quanto aquilo era especial. Só meu pai tinha essa clareza e logo transformou o inspirador quarto em seu ateliê de pintura, que dava de frente para um paredão da Floresta da Tijuca.

Sem dúvida, internamente, o ambiente era suscetível à magia, inclusive a sua luz era plena. Entre pedras, matas e ladeiras, do nada, surgiam os alquimistas de Jorge Ben. E eles chegaram de boa, devagarinho, em passos módicos como os sugeridos por Martinho da Vila em uma canção que cantaria alguns anos depois em Irajá. Vieram acompanhados de um coro de outro planeta, aterrisam em nosso coração com um estribilho insistente, convidativo. Ben continua dizendo que eles moram bem longe dos homens. Poderia algo ser mais sedutor que isso? Via "Os alquimistas estão chegando" como uma ode ao sonho e ao mundo mágico. Eu, uma criança de 10 anos queria morar ali e talvez até morasse mesmo. Em meio às pedras da pedreira (imagem abaixo, com a pedreira hoje bem menor do que em 1974) vinha o cheiro azedume da cevada da fábrica da Brahma (que ficava a pouquíssimos metros, víamos da janela a enorme chaminé), que invadia sem solenidade as minhas tardes levadas pelo aviso intermitente do vento, que além do frescor também trazia o odor da fabricação da cerveja e um certo fastio seguido por uma dor no peito. Por outro lado, morar perto da Brahma não deixava de ser fascinante para uma família que desde sempre amou compartilhar as brejas entre almoços e outras festividades. Os alquimistas pareciam rondar de verdade aquela velha Tijuca, enquanto as leis de Hermes Trismegisto estavam ali a brincar, misturar, coagular e triturar, na surdina, aqueles dias, a por em prática suas regras herméticas, com a devida paciência exigida. 


Ter que subir uma ladeira íngreme (imagem acima) todo dia exigia um esforço incomum, mesmo se estamos falando de uma criança de dez anos e às vezes batia um desespero lacerante. Morar ali tinha que se pagar um alto preço, embora também estimulasse ao extremo a imaginação. Achava eu que morava no espaço, acima de tudo e de todos. Essa certeza era confirmada toda vez que ouvia a bela canção "Magnólia". Tentava imaginar como era essa menina com nome de flor que vinha "numa nave maternal dourada, muito veloz, feita de um metal miraculoso, com janela de cristal e forro de veludo rosa". Como não sonhar com essa menina tão especial, vinda lá de sabe onde? Tudo me fazia crer que eu estava vivendo um sonho, uma fantasia resplandecente, se na televisão existia o Ultraman, que mal seria existir uma menina vindo do espaço? A música fala que o homem a esperaria de branco. Lembro que eu adorava uma calça branca que eu fiz questão de comprar e que guardava para os momentos mais especiais, como ir ao cinema numa tarde de sol durante o meio da semana na Praça Saens Peña e depois tomar um sorvete no Palheta.     
Aqueles dias ressoam hoje em mim como poesia, uma poesia vivida em meio as peças viajandonas da monte bras e as lúdicas do fort apache, com seus índios maus a ganhar sempre dos tristes soldados do exército (sim, aqui o exército perdia!). Essa seria uma interessante e desconcertante metáfora para o momento político daquela época, se de fato eu aos 10 anos de idade soubesse o quanto poderosa ela poderia ser. Depois do tempo correr e muita água já ter passado debaixo da ponte, chegamos ao hoje, quando temos consciência do quanto vivi em um mundo de privilégios, mesmo passando por muitas dificuldades, sei que ter sido branco, de não precisar morar em uma comunidade favelizada (à época sem água e esgoto), e ter uma família estruturada, me proporcionou acessos que a muitos ainda são negados. E voltarei a falar disso quando abordar em outro texto minha vida escolar. Mas Ben estava lá a nos estimular a imaginação com suas letras que beiravam o universo infantil, como o quase blues "O homem da gravata florida". Pensar hoje em fazer uma música sobre uma gravata florida seria impensável: "isso não é só uma gravata, essa gravata é um relatório de harmonia de coisas belas, é um jardim suspenso dependurado no pescoço de um homem simpático e feliz". Mais do que uma música essa é uma viagem pictórica que contrastava com um mundo real insosso e sem graça. As cores de Ben formam uma aventura esperançosa que só as artes podem proporcionar à humanidade. Imagens ricas e coloridas que também estão presentes em "Zumbi", uma canção possuidora de uma força impressionante, que incorpora palavras de origem africana e uma poesia de rara beleza: "aqui onde estão os homens, do lado cana-de-açúcar, do outro lado o cafezal, ao centro senhores sentados, vendo a colheita do algodão branco, sendo colhidos por mãos negras." Aqui as cores de mãos dadas com a consciência social, por meio da criação de uma imagem que fica marcada para sempre em qualquer alma que a escuta. E enfim, Jorge Ben não era só escapismo como muito pensavam.           



Incrível como experiências negativas nos marcam como um trauma. Lembro como fosse hoje que todo o domingo, tarde da noite, após visitarmos meus avós, tínhamos que encarar a ladeira a pé para chegar em casa porque nenhum taxista queria forçar o motor do carro naquela rua tão inclinada. Mas vocês podem estar se perguntando como fomos parar numa casa tão inusitada no alto de uma montanha. A casa pertencia ao cunhado de uma tia, que se prontificou alugar a casa a um preço módico e que garantiria também manter a ideia de clandestinidade dos meus pais, tão necessária para o momento político tenso, onde os partidos estavam proibidos de existir. Nessa casa amigos perseguidos pela ditadura guardavam lá móveis pois estavam em fuga e não queriam ter seus pertences destruídos pelo regime militar. Essa solidariedade alvejada por uma ação libertária marcou muito minha formação na infância. Como dizia Ben na canção "Brother": "Irmão, prepare uma maneira mais feliz para o meu Senhor, com muito amor e flores, e música e música". Claro que a ideia de paz e amor hippie também está a flutuar por esse LP "Tábua de esmeralda". Era necessário lutar, sonhar, tentar ser feliz, mas sempre com o amparo da poesia e da música. "Brother" é uma espécie de canção de louvor tão afeita às lutas pelos direitos civis dos anos 1960, que nos anos 1970 ainda ecoavam com galhardia nos Estados Unidos e no mundo. Ben é daqueles artistas que flutuaram entre a Jovem Guarda e o Tropicalismo. Nesse ponto, lembro da canção crítica do compositor cearense Belchior que volta e meia alfinetava Caetano, Gil e Jorge Ben. A letra da música dizia: 
"Sabe, quase que eu ia fazendo a canção tropical que você me pediu
Mas quem sou eu, mentalidade mediana, para imitar Jorge Ben?
Por favor não confunda as coisas, toda a canção é vulgar
Eu é que sou um cara difícil de domesticar"

Críticas e outros fatos pitorescos à parte, Jorge Ben segue firme em meu coração. Como desprezar um artista que logo a seguir depois de realizar o belo e expressivo monumento musical brasileiro que foi "A Tábua de esmeralda", numa fase inspiradíssima, consegue lançar "Solta o pavão" em 1975. E eu, já completamente tomado pelo disco anterior, a minha relação com esse mais novo me trouxe uma euforia total. Lembro com exatidão que não parava de ouvir de cabo a rabo "Solta o pavão", a ponto de quase literalmente furar o disco. Logo na primeira faixa Ben fala de uma paixão que me acompanhou desde muito novo, o futebol. Meu pai tinha comprado em 1974 uma TV a cores para poder acompanhar a Copa do Mundo. Essa foi a primeira Copa que eu pude assistir com ansiedade pela novidade e até hoje lembrar de tudo. A descoberta de poder viver e descobrir jogadores com nomes estranhos e países que nunca tinha ouvido falar como o Zaire, foi encantador demais e um álbum de figurinha tornou isso mais intenso ainda. Embalado por esse contexto tão lúdico que era o do futebol, quando Jorge Ben cantou "Zagueiro" a atração foi imediata. E a lembrança dele caia em cima dos zagueiros, os jogadores mais esquecidos pelos amantes do futebol, aquele que precisa fazer o trabalho sujo e nada romântico: 'Arrepia zagueiro, limpa a área zagueiro". Muitas das canções eu cantava sem parar, embora nenhuma jamais conseguiu enfeitiçar tanto uma criança de 10 anos quanto "Cuidado com o Bulldog". O sarcasmo da música atiça qualquer criança, aquele cachorro mau que morde a bunda do cara e o impede de ir ao Maracanã assistir ao jogo do seu time. As canções de Ben perfazem um conjunto interessante, porque ele mescla canções que flertam com o mundo infantil com canções esotéricas, de cunho espiritual que envolvem uma pesquisa sobre o tema. Como tudo isso se encaixa é que é potente, porque em todas elas ecoam um humor inteligente que causa uma identificação a quem escuta. Equivalente a "Zumbi" de seu disco anterior podemos pensar em "Jorge da Capadócia", obra emblemática da discografia de Ben. Lembrando que Caetano Veloso em discos diferentes fez versões para essas duas músicas extraordinárias. "Jorge de Capadócia" tornou-se o hino oficial a São Jorge, frisando a faceta mais guerreira e de proteção do santo. 


O que mais eu me surpreendo ao lembrar desses dois discos de Jorge Ben é a capacidade deles de suscitar o inesperado, de trazer emoções imprevisíveis e tentar transcrever o que sentimos ao ouvir essas músicas é de uma dificuldade sem tamanho. Mas a imagem que me vem é a de um passarinho lindo que pousa em nossa janela e não para mais de cantar até ficarmos triste ao vê-lo partir, como uma magia da natureza, uma força indescritível, a tal que Caetano Veloso já cantou em "Fora da ordem": 
"pletora de alegria, um show de Jorge Benjor dentro de nós. É muito, é grande, é total." 
Mais sintético e fidedigno impossível. São dias tijucanos poderosamente encravados em mim.     

Comentários

  1. Que lindeza de texto e de lembranças !

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado! Pena que não se identificou!

      Excluir
    2. Senti uma alegria imensa lendo . Recordar as lembranças boas e as mais ou menos👏👏👏👏👏

      Excluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

UMA BELA MANHÃ (2022) Dir. Mia Hansen-Love

Uma jovem mulher e seus percalços numa França decadente Texto de Marco Fialho Como é bom poder assistir a um filme de Mia Hansen-Love, essa jovem cineasta já com uma carreira sólida e profícua, e vendo ela voltar para os filmes com a sua marca indelével: os dramas românticos arranhados pela dureza da vida cotidiana, de um realismo que caminha entre a vontade de viver e sonhar e a difícil realidade de um mundo que impõe doenças e relacionamentos amorosos complicados.  Um dos pontos a destacar em "Uma bela manhã", esse drama intimista e extremamente sensível, são as atuações dos atores, em especial o belíssimo trabalho de Léa Seydoux como Sandra e a arrebatadora interpretação do experiente ator Pascal Greggory como o pai, um professor e intelectual brilhante que sofre de uma doença neurodegenerativa rara, onde perde a noção espacial e a visão. A câmera de Mia não desgruda a câmera de Sandra e mais do que seu olhar sobre as coisas, acompanhamos o comportamento dela perante às ag