Coluna mensal de Marco Fialho
MÚSICAS QUE HABITAM EM MIM - Nº 1 - Clarice (Caetano Veloso)
link para o LP Caetano Veloso - 1968:
Tropicália (Remastered 2006) - YouTube ou Spotify – Caetano Veloso
Para escutar só a música "Clarice"
https://youtu.be/L8Gi6lr3FnM
Caetaneando em Niterói
Texto de Marco Fialho
O ano era o de 1970. Eu tinha cinco tenros anos de idade. Eu morava com meus pais em um sereno e apertadíssimo apartamento na rua Aymorés, na Praia do Saco de São Francisco, na singela cidade de Niterói (RJ). O Brasil vivia o auge do AI-5, meu pai, carioca convicto, não morava na aprazível Niterói por livre escolha. Era um tipo de esconderijo que restava a um militante do Partido Comunista nesse tempo. Lembro que até há pouco tempo eu vivia olhando para trás com um incômodo desmedido por sentir a presença de alguém no meu encalço. Meus pais andavam assim nas ruas e eu mesmo sem conseguir racionalizar a situação incorporei o trauma de sentir medo, por achar que alguém como uma cobra desse um bote em mim e nos meus pais.
Pensando friamente hoje, minha vida beirava uma ideia de paraíso. Lembro de ir brincar na areia da praia diariamente com minha mãe e meu irmão. As ruas de São Francisco eram bucólicas, deliciosas para caminhar ao cair do sol. Mas não tenho como esquecer que a música era também um tipo de refúgio nesses calorosos dias de papa-goiaba, um motivo de alegria constante, por mais que a velha e imensa vitrola de madeira tocasse discos não tão alegres assim. Mesmo sem saber, e essa é a maravilha de se pensar hoje a respeito, eu estava ali presenciando o início de carreira de novos cantores que sedimentariam o que hoje chamamos de MPB. O que eu ouvia era o pouco que se podia ser comprado por um humilde bancário do então BERJ (Banco do Estado do Rio de Janeiro): muitos deles eram os primeiros da carreira como o do Caetano (1968), do Gil (1968), da Gal (1969); outros apesar de não serem os primeiros, eram quase como o da Elis Regina (1966), Sérgio Ricardo (1968) e um do Milton (1970).
O cinema nessa época eu nem conhecia. E talvez em Niterói não houvesse tantos assim, e com certeza não havia nenhum no Saco de São Francisco (como ainda hoje não tem). Só quando voltei para o Rio, em 1971, que lembro dos meus pais me levarem para assistir filmes em cinema (a maioria era do Chaplin ("Luzes da Cidade", "Em busca do ouro" e "O garoto" foram os mais marcantes), no saudoso Bristol da rua Desembargador Isidro, na Tijuca, bairro que selou meu retorno definitivo para a cidade maravilhosa. Sim, antes do cinema foi a música que despertou em mim algo de especial, me deixou marcado um cheiro que vinha de um produto que se passava nos LPs antes de ouvi-los, desses que buscamos sempre ou que inesperadamente nos capturam para um outro tempo, um tempo onde se misturava uma melancolia e uma alegria por estar vivo e descobrindo coisas.
Os sons de Milton, Caetano e companhia são poderosos para mim, me reconectam de imediato aquele mundo sombrio para o país, mas antes de tudo, me arremessam à sala daquele apartamento, local onde também dormíamos eu e meu irmão em um sofá-cama em xadrez vermelho, preto e branco. Esse ambiente era um mundo para mim, nele se misturavam sensações das mais heterogêneas. Lembro ainda que a sala era o ateliê do meu pai, que fora do expediente bancário se entregava a sua maior paixão à época, a pintura. A trilha sonora era o que me fascinava. Adorava cantar "Superbacana" do Caetano, ela falava de super-heróis que eu nem sabia se eram imaginários ou não, de Copacabana, que eu nem calculava o que seria, embora a sonoridade das palavras me atraíssem enormemente. Como não ficar seduzido pela sonoridade de "super-amendoim supersônico".
Por incrível que pareça, lembro com perfeição da canção Clarice, que me tocava sobremaneira, sentia uma tristeza que pairava para além de mim e isso me comovia, uma descrição de uma dor sincera e profunda. Até hoje me emociono quando a escuto e o que fazer quando aquele órgão nos desperta desde o primeiro sinal dele na introdução? Esse disco do Caetano tinha uma energia de despedida (expressava os sentimentos dele ao deixar Santo Amaro e Salvador) e essa verdade impregnava o disco. "No dia que eu vim-me embora" me marcou em demasia, em especial quando Caetano cantava "mala de couro forrada". Na minha casa tinha uma mala dessas (malas que não existem mais) e eu ficava pensando no cheiro que ela exalava. Nada mais sublime do que um corriqueiro encantamento associativo.
Estranho como nos conectamos por coisas às vezes aleatórias. Em "Paisagem útil" me intrigava ele cantar "uma lua oval da Esso". Acho que essa palavra era bem usual, pois nas propagandas dos programas de TVs havia uma propaganda da Esso e ela me ajudava a sentir a canção, de reconhecer algo. Pensando hoje sobre isso, acho maravilhoso, porque a "lua oval da Esso" era o cerne do que a canção queria dizer, de uma modernização compulsória que vivíamos naquele momento no mundo, mesmo que a maioria não se percebesse disso. Curiosamente, as canções mais famosas do disco ("Tropicália" e "Alegria, alegria") não me chamavam tanto atenção à época. "Onde andarás" era outra canção que me encantava demais. Adorava a parte que dizia "a cigarra do apartamento..." onde ele mudava a impostação de voz (em homenagem aos cantores da época do rádio). Essa coisa da voz alterada mais a sonoridade das palavras me extasiavam (e acho que ainda hoje me extasiam).
Ouvindo o disco inteiro hoje, há algo nele ainda de surpreendente. A sonoridade era suja, a guitarra distorcida, mas tudo era tão fresco e novo para mim, e esse foi o meu primeiro contato com o ato de ouvir música, de ter a experiência de pegar um disco e colocá-lo para tocar em uma vitrola. Portanto, tudo o que havia de diferente nele não foi assimilado como tal. Não havia referências, esse disco e os citados acima foram os que delimitaram e impuseram um parâmetro para tudo o que viria depois a ser ouvido. Era um acervo pequeno, mas determinante, igualável a você aprender a ler e começar de cara com um "Dom Casmurro" como primeira leitura. Nós éramos uma família pobre, e o privilégio de poder ouvir essas músicas e artistas desde cedo realmente fez uma diferença para quando enfim voltei ao Rio. Posso dizer que a experiência em Niterói foi a primeira realmente marcante, que mexeu comigo, que me fez sentir vivo de verdade. Não tínhamos muitos brinquedos, só uma TV pequena em P&B onde víamos alguns desenhos animados inesquecíveis como "O Leão da montanha", "Manda-chuva", "Os Jetsons", "Lippi e Hardy", "Mosquete, Mosquito e Moscardo', "Coelho Ricochete e blau-blau", "Os impossíveis", "Frankenstein Jr.", "Space ghost", "Mightor", "Os Herculóides", "Homem pássaro", "Shazzan" e a série Ultraman. Sim, e tinham os discos, assim pelo menos ficou gravado em mim.
Como pensar o disco de estreia de Caetano sem lembrar da capa genial de Rogério Duarte? Talvez seja uma das mais inusitadas da música brasileira. Tudo nela evoca um estranhamento, mas é de entender o quanto sedutora ela era para uma criança. A predominância do rosa e do vermelho, combinados com toques de laranja, verde e amarelo fazia dela não só uma capa chamativa como extremamente sensual. O desenho de Eva (que à época eu nem calculava quem era) cercada por cobra, dragões e bananas a abraçar o artista com olhar grave era demais. Essa capa que beirava o psicodelismo deve ter sido minha primeira relação inconsciente com o cinema, salientando que Rogério Duarte se imortalizou por cartazes icônicos do Cinema Novo (dentre eles "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha e "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos). Enquanto eu caetaneio em Niterói, os outros LPs citados lá em cima dessa minha fase da vida estou a dever a eles um texto igualmente especial. Mas vai ficar para um breve depois. A amêndoa pode ser feia, mas a amendoeira é linda.
Maravilhoso texto!
ResponderExcluirObrigado pela leitura!!
ResponderExcluirIncrível!
ResponderExcluirObrigado pela leitura, uma pena não ter se identificado (a).
ExcluirQue beleza, Marquinho! Seu relato se conecta com lembranças que todos nós, meninos pobres do passado, trazemos para nossa vida de adultos. Que mistério tem a Música?
ResponderExcluirObrigado Carlinhos! Essa pergunta é o que faz ela ser tão poderosa para a nossa existência!
ExcluirFantástico !
ResponderExcluirMr. Fialho. Estou extasiado com o seu texto. Obrigado por compartilhar momentos importantes da sua vida e principalmente de sensações da sua infância. Cheiros sons, ,etc...
ResponderExcluirBruno (Um Urso no Cinrma)
Adorei!
ResponderExcluirPerfeito... brilhante... emocionante! Papai e mamãe.
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