Após sofrer um acidente de carro, Alexia precisa implantar uma placa de titânio na cabeça. Em recuperação, ela evita seus pais em favor do carro. Já adulta, Alexia ainda está apaixonada por carros e atua como showgirl sensual em um salão de automóveis, exibindo a cicatriz na cabeça e uma tatuagem profana no peito. Simultaneamente, ocorre uma série de crimes inexplicáveis enquanto um pai reencontra o filho que estava desaparecido há 10 anos.
Titane a a toxidade ambígua no filme e do filme
Texto de Marco Fialho
Desde a exibição no Festival de Cannes, onde foi agraciado pelo júri oficial com a Palma de Ouro, que Titane vem despertando sentimentos antagônicos, uns odeiam, outros amam. Como assisti ao filme somente agora, algumas semanas depois do lançamento na Plataforma MUBI, pude observá-lo também tentando entender o porquê o filme suscitou tamanhas reações tão díspares.
Se Titane não me encantou (bem longe disso), tão pouco me acendeu uma ojeriza instantânea. Melhor do que ambas sensações, me instigou a pensar questões importantes para mim no cinema, em especial sobre relações, ainda mais porque em última instância esse Titane trata mesmo tanto consciente quanto inconscientemente desse tema da relação: das relações familiares, mas também da relação cinematográfica entre diretor e cena, entre diretor e personagens.
Não é de hoje que temas que envolvem relações familiares estão em voga, na verdade o tema está intrinsecamente entrelaçado à própria história do cinema, basta lembrar de "Lírio Partido" (1919), realizado há mais de cem anos atrás por um dos pais do cinema narrativo, D. W. Griffith, que já tratava à época de uma relação tóxica entre pai e filha. Em Titane, a diretora Julia Ducournau também explora, e com tintas fortes, uma relação abusiva e tóxica entre pai e filha, se aproximando narrativamente mais de um tom fabular, na esfera do cinema fantástico, e porque não dizer do cinema de horror. Afinal, a relação entre um carro e a protagonista Alexia (atuação fria, incisiva e impressionante da atriz Agathe Rousselle) não se configura como somente fetichista, mas antes como um simbolismo incestuoso proveniente de uma violência doméstica.
O elemento fundamental para alavancar o filme, é o da violência social (aqui especificamente familiar), da constatação de que há sim uma violência machista encruada e rotineira que é vivenciada historicamente por diversas mulheres no mundo. A discussão sobre gênero presente
em Titane relaciona-se diretamente a um acontecimento violento bem demarcado nas primeiras cenas e que transformou significativamente a existência de Alexia. A toxidade masculina está no centro de tudo, é detonadora do processo e está marcada no visível pedaço de titânio enfiado na cabeça de Alexia.
Exposta e discutida a relação entre personagens, precisamos enfocar uma outra relação, a da diretora Julia Ducournau com os aparatos cinematográficos e a abordagem utilizada para realizar Titane. E nesse ponto quero introduzir indagações em relação às escolhas de Julia como diretora. Julia introduz questões já bastante batidas e as emprega de maneira um tanto superficiais, como por exemplo a humanização da máquinas (penso aqui na sequência de abertura, onde ainda nos créditos, vemos carros suando e "excitantemente lubrificados") e a mecanização dos indivíduos, que no caso de Titane enfraquece a própria metáfora da violência doméstica, ao deslocar a discussão social para a filosófica, o que não caberia tanto aqui da diretora enfatizar. A narrativa perde força ainda mais quando Julia faz uso de cenas de violência gratuita, de automutilação e autoagressão, que antes de impressionar o espectador o brinda com um imenso vazio, pois essa violência gráfica, explícita, acaba encerrando-se em si mesma, além de soar apelativa. A tudo isso, agrega-se a Titane um fetichismo que a princípio poderia ser enriquecedor ao filme, mas que ao final mostra-se vazio ao mais uma vez acobertar a latente questão social da violência doméstica e da masculinidade tóxica, que afinal é o grande tema a ser explorado.
E as perguntas não cessam: não haveria uma relação abusiva de Julia com os seus personagens? Cabe aqui argumentar sobre a violência dispersa e aleatória de Alexia, o quanto falta à personagem um foco nesse processo da violência. Ela torna-se uma serial killer também de mulheres que não lhe impingiram nenhuma forma de violência. Essa gratuidade da violência soa estranha e retira substância de Titane. Do ponto de vista cinematográfico, Julia estabelece uma câmera cúmplice, que se apraz e se saboreia com as agressões que brotam abundantemente cena a cena. A violência instaura-se em dois níveis: um pelo tema, outro pela maneira como Julia Ducournau lida com personagens e enquadramentos que fetichizam a violência e a objetificam, esvaziando significados e simbolismo pretendidos.
Mas as incongruências seguem no filme. Depois de ser permanentemente violentada pela masculinidade tóxica, o final destinado a Alexia frustra, e muito. Titane merecia ofertar a Alexia alguma forma de redenção, depois de tanta agressão sofrida. Mas se aquele corpo supurava óleo de carro para lembrar a Alexia e a nós a origem de sua desgraça (afinal um corpo que nunca foi passivo, pelo contrário, sempre foi afirmativo frente às violências sofridas), porque ser ao final penalizado mais uma vez? Julia Ducournau oferta a Alexia um final melancólico, eivado de vazio e dor sem fim.
A discussão sobre a masculinidade tóxica se esvai pelo ralo e a redenção final cabe ao personagem masculino de Vincent Lindon, um pai viajandão, cravado por culpas e anabolizado (um tipo também de homem-máquina), um tipo que merece ganhar uma espécie de pai do ano por adotar Alexia como menino e depois como menina (além de resgatar um mínimo de lastro afetivo nela). Em uma atitude cristã, Julia parece acreditar que é possível reconstruir a mesma sociedade podre por meio da redenção de um solitário pai, esquecendo-se que a toxidade não pode ser resolvida a partir de uma atitude isolada ou de uma única pessoa, pois ela é um fenômeno histórico. O que está envenenado precisa ruir e por isso Julia atirou em um alvo importante de ser atingido, mas acabou por acertar o vazio, por não conseguir calibrar a potente arma que tinha nas mãos.
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