A crônica de uma França antiquada
Por Marco Fialho
Em seu primeiro longa, “Os incompreendidos” (1959), François Truffaut abordou o tema do final da infância e entrada na adolescência, em especial dentro do universo escolar e em reformatórios, com visíveis tintas autobiográficas. Dezessete anos depois, em 1976, com “Na idade da inocência”, o cineasta francês retornaria parcialmente ao tema, mas dessa vez expandindo mais a pluralidade de personagens juvenis e adultos, centrando sua atenção mais no cotidiano de uma pequena cidade francesa chamada Thiers. A narrativa escolhida por Truffaut muito se assemelha a de um cronista social.
Esse perfil de crônica do filme lhe confere uma leveza impressionante, que também pode ser visto em outra obra sua, “O homem que amava as mulheres”. O que Truffaut realiza cena a cena é um painel vigoroso de uma França antiquada em permanente conflito com uma visão de modernização americanizada e fútil, sem consistência, apesar de apelativa. O sonho das férias e do conforto econômico aparecem em todo o decorrer do filme. Por meio da infância Truffaut trabalha com visíveis traços arcaicos como o da divisão sexista das turmas de meninos e meninas, assim como as alteridades e contradições presentes nesse frágil tecido social de uma França ainda em busca de se reafirmar no pós-guerra (vale lembrar que somente 30 anos separavam aquela França da 2ª Grande Guerra Mundial).
O contraste não é só visto no desenvolvimento dos costumes, mas aparece também no âmbito do econômico. E para deixar isso bem evidente, Truffaut introduz na história o destoante personagem Leclou, um menino pobre que habita em um barraco bem humilde. Surpreendentemente, a casa desse menino é vista algumas vezes no filme, mas curiosamente nunca a vemos por dentro, enquanto os interiores das casas de personagens com melhores condições financeiras são mostrados constantemente. Essa opção de Truffaut em dar visibilidade a umas determinadas casas e invisibilizar a de Leclou, deve ser pensada como um apagamento social expressivo. A presença dele na história funciona como uma grande interrogação, como ela colocasse todo o resto em xeque. Leclou pode ser visto como a própria contradição da sociedade francesa daquele momento, ele rouba, despreza os estudos e vive constantemente de expedientes para sobreviver. Ele é, em si, a pedra no sapato da hipocrisia social.
Dois ambientes são fundamentais para “Na idade da inocência”: a escola e o cinema. Por meio deles Truffaut expõe as facetas mais obscuras e mesquinhas da vida social dessa pequena cidade francesa. A escola é o maior símbolo da opressão, vista como uma prisão, o local mais autoritário e representante de regras ultrapassadas que impedem a liberdade humana. Já o cinema é o espaço da libertação, que mesmo que esteja também marcado por um sistema de controle, é o local onde tudo pode acontecer, onde os beijos e outros atos ousados são praticados fora da moral vigente.
O que mais fica desse filme-crônica de Truffaut é o seu imenso anseio pela libertação dos seres, o seu desejo mais profundo de que as amarras impostas por um sistema opressivo de nada sirvam para a felicidade humana. E ainda que nossa capacidade de resistir, e buscar caminhos libertadores em meio as regras antiquadas que nos aviltam, sempre devem prevalecer, independente do que os dominadores projetaram para os outros (que somos nós) como ideal para a sociedade.
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