Viver a dor é também renascer
Texto de Marco Fialho
Alguns podem ter ficado surpresos com a pitada política de "Mães Paralelas", o mais recente trabalho de Pedro Almodóvar. Vale ressaltar que talvez seja mais acertado falar referência histórica ao invés de pitada política. Sim, esse viés não é tão comum aos filmes desse tão importante cineasta madrilenho. Se "Mães paralelas" discute origem é bom aqui lembrarmos da origem artística de Almodóvar, pois talvez possa ajudar no diálogo com essa obra que certamente ficará marcada na carreira dele.
É de bom tom, e talvez até necessário, regredirmos à época da ditadura fascista do General Franco (1936-1975) para poder refletir e relacionar Almodóvar com esse determinante fato histórico, crucial para a vida cultural espanhola do Século XX. Dá para medir a força política dessa ditadura que sobreviveu a uma forte oposição (bom lembrar da Guerra Civil espanhola - 1936/39) e a ter conseguido ficar de pé até com o fim fascismo e nazismo em 1945, em parte porque já tinha destruído toda a oposição durante a Guerra Civil espanhola. Somente com a morte de Franco em 1975, que o regime fascista perdeu força e o processo democrático pode iniciar uma restauração tanto pelo viés político quanto pelo cultural. Esse é o contexto no qual surge um movimento de renascimento cultural espanhol chamado Movida Madrilenha, que nasce em Madrid e se espalha rapidamente por toda Espanha. Pedro Almodóvar foi um dos grandes nomes dessa retomada cultural, promotor de uma efervescência que há muito já se encontrava viva, apenas adormecida pelo autoritarismo feroz do franquismo.
Não casualmente, os primeiros filmes de Almodóvar trouxeram à tona a poeira cultural que o regime franquista tanto tentou amordaçar e exterminar, o jogando a todo o momento para debaixo do tapete. Com a morte de Franco, em 1975, a explosão do caldeirão cultural foi inevitável e Almodóvar foi não só a maior expressão dele como a mais duradoura. Não havia tempo a perder e Almodóvar simplesmente foi visionário, olhou sempre para frente, jamais para trás, ou esse foi o seu jeito de olhar para o passado? O atraso espanhol era retumbante e a estratégia de olhar para frente foi primordial e decretou uma clivagem radical. Foi preciso esperar mais de 40 anos para que os absurdos do regime franquista fosse foco de Almodóvar. A palavra mães aqui vai muito além do título do filme, instaura uma reconexão de um artista com a memória do seu país, pois são elas as que mais sofreram (e sofrem) com o extermínio humano e apagamento da história promovidos pelo franquismo.
Não que Almodóvar amenize as tão celebradas cores que já renderam até uma música de Adriana Calcanhoto, pelo contrário, as acentua mais do que nunca. Será que as cores de Almodóvar é um esforço do artista em colorir uma sociedade que viveu anos a fio sem elas? É uma possibilidade poderosa sim, e talvez isso seja tão verdadeiro que elas estejam em "Mães paralelas" como há muito tempo não víamos em seu cinema. Seria para Almodóvar agora o momento exato para restaura-las? Almodóvar começou a sua obra de uma maneira afirmativa, edificando o mundo a partir do que acreditava e essa foi a resposta dele ao franquismo, mostrar que à revelia do opressor um outro mundo estava sendo gestado. As cores de Almodóvar foram isso, a resposta artística possível. E as cores eram plenamente cênicas, elas estavam na camada visível dos cenários e objetos, mas sobretudo na alma das personagens. No decorrer da carreira, Almodóvar nos fez reconstruir e redefinir o que era ser mãe, o que era o amor e até onde ele poderia ir (ao ilimitado, claro!); e o mais importante, arregaçou as portas da discussão em torno do gênero, e nos fez apaixonar por todas as formas possíveis (até as que jamais foram sequer imaginadas pelo conservadorismo social), de expressão amorosa e sexual.
Com "Mães paralelas" Almodóvar deixa evidente que não está a apagar o cinema que realizou até agora, o melodrama está firmemente presente no filme e o amor sem barreiras também. Para ele, o ato de revolver o passado não apaga o presente, apenas o reforça, o ressignifica para o caminhar poder continuar. Assim segue Almodóvar a contemplar a maturidade, dele e a da Espanha. Em "Dor e glória" já havia reencontrado o seu passado em uma espécie de autobiografia, e agora faz o mesmo com o do país. Em "Mães paralelas", duas histórias estão sendo narradas e formam duas camadas temporais, uma no presente e outra no passado. Mais importante do que pensar qual das duas ali predomina, é vivê-las como duas camadas dialógicas no decorrer da narrativa. Muitos podem estar a perguntar qual o paralelo entre a história da mãe vivida pela sempre luminosa Penélope Cruz (indicada ao Oscar por este papel) e das tantas mães que viram tombar filhos e filhas para o regime fascista de Franco. Há pelo menos um paralelo bem evidente: se precisamos apagar as mentiras do passado e convivermos com a dor proveniente dele, não podemos corroborar com as mentiras e os apagamentos de hoje. A transparência deve prevalecer em ambas. Viver a dor é também renascer e Almodóvar assim faz em "Mães paralelas", mescla presente e passado para reconstruir um outro futuro, onde as cartas estejam às claras na mesa para um novo jogo.
O que fazemos quando Almodóvar ao final conecta tudo com um pensamento pungente de um escritor uruguaio? Em mim, ele puxa com uma força incalculável uma assombrosa história latino-americana, que tão bem se relaciona com o horror do genocídio franquista. Ao citar Eduardo Galeano ele mexe com a memória dos crimes cometidos pelos militares em toda a América, almagama as mães da Espanha com as do lado de cá, onde as argentinas são a mais exemplares ao resistirem fervorosamente ao apagamento da memória, e de reafirmarem a dor como algo que jamais poderá ser apagado, nem pelo mais sanguinário dos genocidas. Entretanto, por mais que eu escreva e tente digerir, essas palavras de Galeano continuam a atazanar e a rondar o pensamento, e com elas deixo o filme ecoar ao vento:
"Não existe história muda.
Por mais que a queimem,
por mais que a quebrem,
por mais que mintam,
a história humana se recusa a ficar calada."
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