O corpo como janela do existir
Texto de Marco Fialho
A Mostra de Cinema de Tiradentes se consagrou por apresentar filmes que buscam alguma dose de risco (mesmo se em algumas horas os próprios curadores queiram desfazer essa imagem já formada), um cinema que esbarra em fronteiras, tanto as de linguagem como as físicas (geográficas, geracionais, de pensamento ou de corpo), basta conferir o compêndio selecionado pelos curadores que exibe 26 longas escolhidos como representativos dos 25 anos desse evento, que tradicionalmente abre o circuito de festivais de cinema no Brasil. É nesse viés que se assiste a Tiradentes para testar os mais variados limites e para se ter algum momento de descoberta, e até de autodescoberta. Até o momento, o filme que mais chegou a esse ponto de clivagem foi "Seguindo todos os protocolos", do diretor pernambucano Fábio Leal (Reforma).
Pelo título já se pode supor que o filme de Leal aborda, ou pelo menos, é perpassado pelo tema da pandemia, mas evidente que ele vai muito além disso. Para quem já havia assistido o ótimo curta "Reforma", já podia esperar que o corpo, no caso de Leal substancialmente o seu próprio corpo, estivesse a mediar sempre as discussões e ações. A pandemia entra como parte do contexto e como elemento deflagrador de discussões do universo LGBTQIAP+, mas não só. Sem esquecer que o cinema de certa forma sempre trabalha com corpos, pois eles são praticamente a materialidade de quase todos os filmes, no cinema de Leal isso é exponencial, pois praticamente o que vemos são corpos, muitas das vezes nus e performando sexo, fora dos padrões heteronormativos e dos próprios padrões sociais estabelecidos de beleza (os famosos corpos de apolo vindos das academias e dos anabolizantes). Aqui o corpo torna-se a janela para se discutir o existir, ainda mais porque o existir passa pelo corpo e pela busca do prazer. "Seguindo todos os protocolos" se estabelece nesse território, onde o corpo mais do que materialidade é campo político e de expressão, desenha efetivamente uma maneira mesmo de existir e estar no mundo.
Fábio Leal estrutura o filme a partir de episódios, que podem ser vistos como blocos de encontros de corpos amorosos (ou não, pois muitas dissensões acontecem). Essa estrutura permite ao filme ter uma maior leveza narrativa, pois o fazem funcionar quase como partes independentes, embora também crie uma certa desigualdade entre as partes. Não que uma parte não dialogue com outras, mas porque elas carregam em si uma lógica própria e conclusiva, como se fossem vários curtas a partir sempre de Chico (protagonizado pelo próprio Fábio Leal), este sim um elemento fortemente unificador. Fabio então é Chico, um homem branco, solteiro, gay e tenso, mas muito tenso mesmo pelo medo de contrair Covid-19.
Chico vive o conflito humano real na pandemia, o de pegar o vírus que matou mais de 600.000 brasileiros. E o desejo sexual, como fica? Depois de 10 meses o corpo não aguenta mais tamanha castidade e clama por ação. Leal vai no ponto certo, a pandemia foi uma adversária cruel do desejo, e evidentemente do corpo. Para Leal, o desejo ultrapassa os protocolos que impedem o prazer. O título do filme serve como uma ironia sagaz da luta do homem em se sentir seguro e buscar o prazer. Em um momento de tantas mortes, nada mais nos conecta a vida do que o prazer sexual. Os relaxamentos dos protocolos vão claramente diminuindo quando o prazer e a necessidade de viver falam mais alto. Antes de tudo, não é uma questão de vida, mas sim de viver.
Fábio Leal constrói "Seguindo todos os protocolos" praticamente em um único espaço, o de um apartamento, a trama quase solitária desse homem em busca de viver, utiliza habilmente do espaço claustrofóbico do apartamento (repare o quanto a câmera não enquadra o mundo de fora), mas vai além, faz uso de planos próximos, closes e vale sublinhar, de planos detalhes. A câmera é um elemento central no filme, como pouco se viu nos últimos tempos, o que atesta o talento de Fábio Leal como diretor em seu primeiro longa solo. Ela é pensada para criar um estado mental, pois não basta retratar o isolamento físico dos corpos, é necessário saber mostrar como os corpos agem e reagem a esse confinamento, afinal o confinamento molda e se manifesta no corpo. Tudo é muito íntimo, angustiante e sufocante. Ao abordar os prazeres humanos, Fábio amplia as sensações de isolamento pandêmico. Estamos cerceados de todos os lados, tanto por uma suposta (muitas vezes falsa) comunicação digital, fria e vazia (a cena inicial muito diz sobre isso) quanto por paredes, objetos e outros corpos. Como se amar com máscaras nos rostos, como se beijar? Os prazeres estão limitados e obscurecidos pelos cuidados e protocolos. Seria possível mesmo amar ou simplesmente transar assim? Os medos ficam ampliados, cerceiam os sentimentos violentamente.
Mas Fábio Leal não esquece que mesmo assentados na realidade deste mundo com o peso da pandemia nas costas, todos precisamos também do universo fabular. São as fantasias que nos fazem continuar a caminhar, mesmo nos momentos mais pesarosos. O cinema se torna então uma chave fundamental para lembrar a todos que também temos que voar, mesmo que seja só na imaginação. Se o apartamento simboliza a prisão, o espaço da rua representa a possibilidade de se sentir livre. Fabio nos lembra que os corpos sabem disso e finaliza seu filme dando um presente ao ex-corpo preso. Um dos momentos mais sublimes que o cinema pode nos oferecer nos últimos anos.
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