Pular para o conteúdo principal

SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS (2021) Direção de Fábio Leal


O corpo como janela do existir

Texto de Marco Fialho

A Mostra de Cinema de Tiradentes se consagrou por apresentar filmes que buscam alguma dose de risco (mesmo se em algumas horas os próprios curadores queiram desfazer essa imagem já formada), um cinema que esbarra em fronteiras, tanto as de linguagem como as físicas (geográficas, geracionais, de pensamento ou de corpo), basta conferir o compêndio selecionado pelos curadores que exibe 26 longas escolhidos como representativos dos 25 anos desse evento, que tradicionalmente abre o circuito de festivais de cinema no Brasil. É nesse viés que se assiste a Tiradentes para testar os mais variados limites e para se ter algum momento de descoberta, e até de autodescoberta. Até o momento, o filme que mais chegou a esse ponto de clivagem foi "Seguindo todos os protocolos", do diretor pernambucano Fábio Leal (Reforma). 

Pelo título já se pode supor que o filme de Leal aborda, ou pelo menos, é perpassado pelo tema da pandemia, mas evidente que ele vai muito além disso. Para quem já havia assistido o ótimo curta "Reforma", já podia esperar que o corpo, no caso de Leal substancialmente o seu próprio corpo, estivesse a mediar sempre as discussões e ações. A pandemia entra como parte do contexto e como elemento deflagrador de discussões do universo LGBTQIAP+, mas não só. Sem esquecer que o cinema de certa forma sempre trabalha com corpos, pois eles são praticamente a materialidade de quase todos os filmes, no cinema de Leal isso é exponencial, pois praticamente o que vemos são corpos, muitas das vezes nus e performando sexo, fora dos padrões heteronormativos e dos próprios padrões sociais estabelecidos de beleza (os famosos corpos de apolo vindos das academias e dos anabolizantes). Aqui o corpo torna-se a janela para se discutir o existir, ainda mais porque o existir passa pelo corpo e pela busca do prazer. "Seguindo todos os protocolos" se estabelece nesse território, onde o corpo mais do que materialidade é campo político e de expressão, desenha efetivamente uma maneira mesmo de existir e estar no mundo.

Fábio Leal estrutura o filme a partir de episódios, que podem ser vistos como blocos de encontros de corpos amorosos (ou não, pois muitas dissensões acontecem). Essa estrutura permite ao filme ter uma maior leveza narrativa, pois o fazem funcionar quase como partes independentes, embora também crie uma certa desigualdade entre as partes. Não que uma parte não dialogue com outras, mas porque elas carregam em si uma lógica própria e conclusiva, como se fossem vários curtas a partir sempre de Chico (protagonizado pelo próprio Fábio Leal), este sim um elemento fortemente unificador. Fabio então é Chico, um homem branco, solteiro, gay e tenso, mas muito tenso mesmo pelo medo de contrair Covid-19.

Chico vive o conflito humano real na pandemia, o de pegar o vírus que matou mais de 600.000 brasileiros. E o desejo sexual, como fica? Depois de 10 meses o corpo não aguenta mais tamanha castidade e clama por ação. Leal vai no ponto certo, a pandemia foi uma adversária cruel do desejo, e evidentemente do corpo. Para Leal, o desejo ultrapassa os protocolos que impedem o prazer. O título do filme serve como uma ironia sagaz da luta do homem em se sentir seguro e buscar o prazer. Em um momento de tantas mortes, nada mais nos conecta a vida do que o prazer sexual. Os relaxamentos dos protocolos vão claramente diminuindo quando o prazer e a necessidade de viver falam mais alto. Antes de tudo, não é uma questão de vida, mas sim de viver. 

Fábio Leal constrói "Seguindo todos os protocolos" praticamente em um único espaço, o de um apartamento, a trama quase solitária desse homem em busca de viver, utiliza habilmente do espaço claustrofóbico do apartamento (repare o quanto a câmera não enquadra o mundo de fora), mas vai além, faz uso de planos próximos, closes e vale sublinhar, de planos detalhes. A câmera é um elemento central no filme, como pouco se viu nos últimos tempos, o que atesta o talento de Fábio Leal como diretor em seu primeiro longa solo. Ela é pensada para criar um estado mental, pois não basta retratar o isolamento físico dos corpos, é necessário saber mostrar como os corpos agem e reagem a esse confinamento, afinal o confinamento molda e se manifesta no corpo. Tudo é muito íntimo, angustiante e sufocante. Ao abordar os prazeres humanos, Fábio amplia as sensações de isolamento pandêmico. Estamos cerceados de todos os lados, tanto por uma suposta (muitas vezes falsa) comunicação digital, fria e vazia (a cena inicial muito diz sobre isso) quanto por paredes, objetos e outros corpos. Como se amar com máscaras nos rostos, como se beijar? Os prazeres estão limitados e obscurecidos pelos cuidados e protocolos. Seria possível mesmo amar ou simplesmente transar assim? Os medos ficam ampliados, cerceiam os sentimentos violentamente.  

Mas Fábio Leal não esquece que mesmo assentados na realidade deste mundo com o peso da pandemia nas costas, todos precisamos também do universo fabular. São as fantasias que nos fazem continuar a  caminhar, mesmo nos momentos mais pesarosos. O cinema se torna então uma chave fundamental para lembrar a todos que também temos que voar, mesmo que seja só na imaginação. Se o apartamento simboliza a prisão, o espaço da rua representa a possibilidade de se sentir livre. Fabio nos lembra que os corpos sabem disso e finaliza seu filme dando um presente ao ex-corpo preso. Um dos momentos mais sublimes que o cinema pode nos oferecer nos últimos anos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...