Pular para o conteúdo principal

"O PROCESSO", "DOM QUIXOTE" e "SOBERBA"


Welles e a literatura como indício cinematográfico

Texto de Marco Fialho

"Eu baderneiro, me tornei cavaleiro

malandramente, pelos caminhos.

Meu companheiro, está armado até os dentes

já não há mais moinhos

como os de antigamente"*

* trecho da letra da música "O cavaleiro e os moinhos" de João Bosco com letra de Aldir Blanc


A literatura marcou a vida de Orson Welles, portanto não foi casual o fato de muitos de seus projetos se apoiarem em adaptações literárias. Também não deve ser considerado desprezível que Welles, antes de Francis Ford Coppola, tenha cogitado filmar "O coração da selva", de Joseph Conrad, para ser seu primeiro filme quando assinou contrato com a grande produtora RKO. Aqui analisaremos especificamente três adaptações literárias realizadas por Welles: "Soberba" (1942), "O processo" (1962) e o polêmico "Don Quixote" (1992), montado por Jess Franco após a morte de Welles.

Os três filmes apresentam histórias e trajetórias bem diversas. Enquanto "O processo" foi um dos poucos filmes que Orson Welles realizou com total controle do processo criativo, mesmo tendo alguns problemas orçamentários, "Dom Quixote" virou uma saga desastrosa de 14 anos em que Welles não conseguiu finalizar o filme. Em contrapartida "Soberba", adaptado do livro de Booth Tarkington, realizado logo após "Cidadão Kane", foi todo reeditado pelos produtores, que esquartejaram a obra de Welles. Mas a potência criativa de Welles era tal que a obra resiste às amputações sofridas. 


Devido à intromissão da produtora na edição final de "Soberba", aproveitando a estada de Welles no Brasil, este pode ser considerado um dos filmes mais irregulares da carreira. Nota-se que o roteiro apresenta oscilações suspeitas. O filme inicia com uma visão da família Ambersson, do ponto de vista dos vizinhos, que Welles utiliza sabiamente para retratar a infância do personagem George, mas aos poucos, a história vai se interiorizando e o ponto de vista fica a cargo do próprio George. Enquanto em "Cidadão Kane" conhecemos a vida dele pelas narrativas alheias, em "Soberba" ela torna-se imprecisa e confusa, ora pelo protagonista ora por outros personagens, o que tira a coesão que facilmente encontramos em "Cidadão Kane", e abala muito a potência narrativa da obra.

Welles inclui ainda na narrativa uma voz over, feita por ele mesmo (que não está atuando no filme), que confere um humor cáustico à narrativa. Pena que ele use essa voz apenas no início e no fim do filme, pois ela usada em outras partes poderia dar mais unidade à narrativa como um todo. Aos poucos, Welles conta uma história típica do capitalismo recente norte-americano, de ascensão e queda econômica e moral de uma família, o estabelecimento de fortunas por uma geração e a consequente destruição pela geração subsequente. Welles se aproveita do romance de Booth Tarkington para fazer imprimir na tela o seu traço mais comum: desconstruir a sociedade norte-americana, arrivista, arrogante, disposta a por os valores do enriquecimento individual à frente da realização humana em prol de uma ideia realização coletiva.


Assim como em "Cidadão Kane", "Soberba" narra um processo de decrepitude, mas só que não centrada apenas em um indivíduo (Kane), mas sim de uma família, os Ambersson. Apesar de centrado mais em um personagem, o mimado George , há um foco na decadência da família como um todo. George quer viver como um nobre aristocrata (pensamento do Sul escravista), avesso ao trabalho e crítico em relação ao personagem Morgan, interpretado austeramente por Joseph Cotten, um típico empreendedor capitalista (yankee) um inventor e pioneiro da indústria automobilística. Essencialmente, há um visível paralelo entre Kane e George Ambersson, ambos são personagens talhados à infelicidade e ao fracasso por não conseguirem ver o mundo fora de suas perspectivas.

É sabido o quanto Orson Welles penou com as mãos de abutres dos mega produtores de Hollywood. Radicado na França, Welles conseguiu realizar em 1962 "O processo", filme em que teve total controle do início ao fim do processo, algo bastante raro na carreira. O resultado é uma adaptação primorosa (um dos grandes trabalhos dele como diretor) que preserva o traço barroco que lhe era muito familiar e a influência inconteste do expressionismo - em especial na alternância de cenários claustrofóbicos e aviltantes. Outro viés expressionista do filme está na profusão de escadas, portas e corredores nas quais o protagonista K. (com um Anthony Perkins impecável em cada cena) é submetido, o que cria uma atmosfera labiríntica, com movimentos de câmera bruscos e rápidos, de maneira a expor a saga vertiginosa do protagonista, fazendo com que o espectador participe ativamente dessa experiência desagregadora e desorientadora. 


A fotografia de Edmond Richard, também chamuscada pelo expressionismo, trabalha com eficácia tanto a alma perturbada de K. quanto todo o clima opressor que dá forma ao filme. Os objetos de cena igualmente são precisos em comunicar o poder exercido por meio de uma burocracia que contamina o ambiente, o torna impessoal e que desordena o espaço com pilhas de papéis que sufocam os indivíduos. Welles recria cinematograficamente Kafka como uma fábula do absurdo do mundo contemporâneo capitalista, que se apropria das engrenagens retrógradas da burocracia, para encravar um poder sórdido onde o poder está tão pulverizado que já não conseguimos mais personificá-lo. Vivemos esse torvelinho desesperador juntos com K. como adentrássemos em um pesadelo, que é dele e nosso, afinal também estamos sobrevivendo solitariamente nesse mundo desfigurado. Welles brilhantemente transforma as descrições literárias kafkanianas em imagens e sons potentes, por meio de uma criatividade e talento típicos de um artista em franco amadurecido. 

O jazz utilizado em uma das camadas sonoras pontua, com seu improviso, o aspecto emocional de K. e o ambiente paranoico de uma sociedade excessivamente controladora. Anthony Perkins, com um estereótipo de homem comum e inocente, incorpora um perfeito Joseph K., personagem que caminha deambulante pelos labirintos promovidos por policiais, burocratas, advogados, funcionários da justiça e mulheres estranhamente sedutoras, tentando sobreviver no caos saboroso cinematograficamente arquitetado por Welles, em que os espaços se misturam para manter a sensação de aprisionamento de K.. Não é exagero afirmar que em "O processo", Welles está pleno, autoconfiante e brilhante, e sem perder a um só momento a mão pesada que tanto identifica o seu estilo artístico.

Em uma entrevista para promover o filme, Welles discorre acerca da visão crítica que ele tinha em relação ao personagem K.: 

"É um pequeno burocrata. O considero culpado... Pertence a algo que representa o mal e ao mesmo tempo, faz parte dele. Não é culpado pelo que o acusam, mas é culpado: pertence a uma sociedade culpada, colabora com ela" (trecho extraído de "Orson Welles" de Santos Zunzunegui. Editora Cátedra, Madrid, 2010. p. 244-245).

Mesmo estando mais maduro como artista, "O processo" não deixa reafirmar a postura crítica de Welles perante ao mundo tal como ele é organizado pelos poderosos de toda a espécie, além de confirmar a fama indelével de enfant terrible, mesmo se aproximando dos 50 anos de idade. A marca do inconformismo jamais o abandonará no decorrer da longa carreira, estará sempre presente, gritante até. O humor, outra característica de Welles, com o passar do tempo será depurado, embora cada vez mais cáustico e refinado, basta lembrar do último filme, "F for fake". 


"O processo" mostra perfeitamente o que Welles pode fazer quando teve a tal da liberdade de criação. Indo em um caminho inverso, chegamos em "Dom Quixote", um capítulo à parte nas contínuas intervenções na obra de Welles. A realização de "Dom Quixote" sintetiza e simboliza bem a sua tenacidade, a saudável teimosia que tão bem expressava a luta pelo que esse artista fenomenal acreditava. Era difícil lidar com a alma carismática, imponente e constantemente criativa que ele possuía. Por isso, Welles travou diversas batalhas quixotescas por trás das câmeras para tentar finalizar o seu maior sonho, o mais ousado projeto: filmar a obra seminal de Miguel de Cervantes, que julgava ser a máxima da literatura mundial.

Antes de iniciar uma análise da obra é bom considerar o fato de Welles nunca ter finalizado "Dom Quixote", apesar do imenso esforço de ter filmado de 1954 a 1985. Foram anos de luta realmente inglórias e quixotescas, até que 1992, Jess Franco, seguindo apontamentos de Welles, realizou uma montagem mesmo sabendo que muitas cenas filmadas foram perdidas. É necessário e importante ponderar que por mais que "Dom Quixote" seja uma obra inacabada, existe na montagem de Franco a presença do espírito rebelde e transgressor de Welles, que dá para sentir a ideia pulsante do realizador, mesmo que prevaleça a irregularidade na narrativa. Sim, é melhor tê-la mesmo incompleta do que inteiramente perdida. A personalidade transbordante de Welles está viva no material, inclusive como diretor no próprio filme, interferindo diretamente na narrativa. Há inclusive uma inusitada cena de um encontro entre o diretor Welles e o personagem Sancho Pança (criador e criatura). 


Nessa montagem de Jess Franco, o que vemos é uma proposta de Welles no sentido de atualizar a obra de Cervantes em uma reflexão dialógica entre uma literatura escrita no século XVII com a sociedade espanhola dos anos 1950, que não casualmente convivia com a longeva e terrível ditadura do General Franco (1938-1973). A atitude wellesiana é de clara subversão à obra de Cervantes, inclusive a confrontando com a contemporaneidade para dela surgir uma nova obra, tão desafiadora quanto a original. Welles interroga a obra, a desafia a olhar para o presente e lançar questões. 

Um dessas questões é a de colocar Dom Quixote como alvo da indústria cultural e Sancho Pança exposto ao espetaculoso show das corridas de touro pelas ruas lotadas. Welles constrói assim um discurso sobre os absurdos históricos, de ecos do passado que teimam ainda a existir. Uma das cenas mais belas é a de Dom Quixote entrando de armadura com seu Rocinante pelas ruas lotadas de uma Sevilha agora urbana, com modernos automóveis, se deparando com uma imagem dele próprio azulejado no beiral de uma casa. Welles promove então o encontro temporal do personagem, um do passado e outro presente, um cristalizado em uma parede, outro vivo, caminhando sob os aplausos da população amontoadas nas ruas, janelas dos quartos e varandas. Logo a seguir, Welles aparece filmando os dois cavaleiros: enquanto Sancho Pança se diverte com as filmagens, Dom Quixote faz um discurso melancólico, argumentando que as câmeras eram armas demoníacas. Ele diz "felizes os séculos que não tinham esses instrumentos detestáveis..." E completava dizendo que essas máquinas eram usadas para transformar verdades em mentiras, e mentiras em verdades. Enfim, mais wellesiano que isso, impossível.                             

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...