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"MACBETH" (1948) "OTHELLO" (1952) e "FALSTAFF" (1965)


W(elles) Shakespeare

Texto de Marco Fialho

Não se pode dissociar a imagem artística de Orson Welles de William Shakespeare, tão profunda foi a influência exercida pelo dramaturgo inglês na formação humana e artística do cineasta norte-americano, em especial o gosto pela ascensão e decadência de uma grande figura, seja um empresário, um rei ou um general. 

Nas incursões de Welles pelo teatro, Shakespeare era um habitué. Já no cinema, Orson Welles realizou três filmes baseados nas peças do ilustre bardo inglês: "Othello", "Falstaff" e "Macbeth". Estilisticamente, "Falstaff" se diferencia bastante de "Othello" e "Macbeth", pois se caracteriza como uma comédia burlesca, já as outras duas obras como dramas com pinceladas expressionistas ditadas por uma fotografia marcadamente contrastada e por uma atuação sinistra de Welles na pele de Macbeth e outra atordoada como Othello, ambas impressionantes, a acentuar a tragédia shakespeariana.


Em "Falstaff", Welles decide fazer um roteiro criativo a partir do personagem Falstaff, que aparece em algumas obras de Shakespeare, sempre como um homem simples, dedicado aos prazeres mundanos e amigo desde a adolescência do rei Henrique V, mas que é desprezado por este quando assume o trono inglês. 

Um grande trunfo de Welles neste filme é resgatar a história de um rei pelo viés de um personagem simplório, preocupado tão somente em usufruir da vida na companhia dos amigos que tanto admirava. Nesse aspecto, Welles retorna ao tema de "Cidadão Kane": o sequestro da essência vital do ser humano: a busca pela felicidade e a celebração plena da vida, aqui não pela ação do dinheiro, mas sim pela ambição do poder. Enquanto em Kane da criança se subtrai a infância visando-se um futuro de riqueza (ser alguém na vida), vemos Falstaff entregar-se à morte ao descobrir que o atributo da amizade não é valorizado por Henrique V quando este é empossado rei. 


Já "Othello" e Macbeth" trazem a marca inconfundível de Shakespeare, a da traição, da inveja e da falsa confiança, temas recorrentes e universais das suas tragédias e que encantavam profundamente Welles desde a mais tenra idade. Othello assediado pelo traiçoeiro Iago que perversamente alimenta no guerreiro Othello uma falsa traição de sua fiel amada Desdêmona. Em "Macbeth", o próprio tem a consciência torturada por ter traído e assassinado o rei para assumir o trono, depois de ser convencido pela própria esposa a assim proceder, o que o deixa atormentado depois de consumar com sucesso este macabro plano. Welles filma "Macbeth com pouquíssimos recursos (o que é bem notório na concepção da direção de arte), e compensa na ênfase soturna da história. Apesar de ter economizado ao máximo na cenografia, usou e abusou das névoas (os fogs tão presentes na obra shakespeariana) que escondiam o segundo plano e criavam uma atmosfera psicológica mais pesada.

Em "Othello", a produção é mais esmerada e Welles pode exibir uma fotografia com rigorosos planos em P&B de alto impacto visual, escorados por um significativo contraste entre o preto e o branco. Em muitas cenas Othello aparece com o rosto no escuro, como se estivesse mergulhando em um abismo de si mesmo. A câmera também vai aos poucos se afundando junto com o personagem traduzindo a sua inconstância, chega mesmo a perder a instabilidade até assumir a vertigem como algo intrínseco à narrativa. Orson Welles não teme em ser ousado e às vezes até excessivo, busca incorporar um barroquismo perigoso mas que é muito bem administrado pelo enorme talento como diretor. Quase tudo em "Othello" traduz um quê de idiossincrático que é típico no cinema de Welles. Ao que tudo indica, quanto mais a indústria o cerceou mais impetuoso ele ficou. O risco passa a ser um fiel companheiro e ao trazer Shakespeare para o cinema sabia das dificuldades e das limitações, chegou até a declarar que era impossível atingir a genialidade do escritor inglês pela complexidade de temas e de léxico que expressou, mas que por isso era preciso escolher um viés e ir fundo nele. 


E assim Welles o fez. Quando filmou "Macbeth" despejou uma forte influência do cinema expressionista alemão (que ele sempre admirou explicitamente), para dar corpo e sentido à obra shakespeariana. A imagem ganha um estatuto de texto para realçar o conteúdo sinistro da maquiavélica trama, abundante em traições, ambições, intrigas e assassinatos. Rostos e espaços encobertos por sombras; maquiagens e figurinos pesados dão a tônica e compõem a camada estruturante da obra. Tudo de material no filme está ambiguamente escondido, o que está às claras são os olhares das personagens sempre a revelar o que mais importa, a dissimulação torpe do humano pelo poder. 

O aspecto material também possui uma força em "Othello". Welles dividiu a filmagem em dois territórios expressivos: na decadente Veneza e no conflituado Marrocos. O diretor explora magistralmente a marca do tempo em cada um desses lugares e instaura uma dubiedade na própria composição da imagem, já que estar nesses locais separados pelo mar era um desafio e propiciava a disseminação de informações falsas. África e Europa formam uma dicotomia difícil de administrar e Othello (o mouro) está no centro dessas discórdias, ele africano, Desdêmona europeia. Existe um historicamente um simbolismo evidente, um quê de irreconciliável nessa equação e Othello foi a síntese que Shakespeare desvendou como poucos em sua teatralidade, colocando a arquitetura como texto e Welles se apropriou habilmente dessa ideia. 


Continuando a falar ainda da materialidade, mas agora a do próprio texto que é dito no filme, há algo de interessante a observar quanto ao respeito que Welles demonstra pela poética shakespeariana. Se há uma óbvia e necessária edição textual, há igualmente uma tentativa de preservar e não macular algo de precioso do original, como um reconhecimento valorativo de Welles ao bardo inglês, uma espécie de culto a uma beleza única e vívida na obra do mestre e que deve ser de alguma maneira preservada. É possível sentir isso tanto em "Othello" quanto em "Macbeth", um respeito que nos chega na sonoridade poética que está presente em especial nas falas de ambos os protagonistas. 


Mas se em "Othello" e Macbeth" há um certo rigor de manter a melodia poética e textual de Shakespeare, em "Falstaff" o mesmo não acontece e o que predomina é o viés nitidamente mais prosaico. Se nas obras mais clássicas há uma teatralidade (inclusive nas interpretações, nos cenários e figurinos), em "Falstaff" ela não aparece como uma camada visível e a estrutura mais cinematográfica salta mais aos olhos. A figura histriônica do protagonista prevalece e os resquícios mais formais desaparecem. A liberdade e a leveza da câmera predomina e tudo está ali para fortalecer a imagem bonachona de Falstaff. Welles, como grande conhecedor da obra shakespeariana sabia bem como conceber e adaptar como poucos o mestre inglês para as telas, e por incrível que pareça, é "Falstaff" a obra que mais revela essa habilidade e sensibilidade em saber como proceder e caminhar por essas complexas obras. Era um gênio se apropriando de outro, não podia mesmo dar erro.                                                                                              

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