Um documento entre o íntimo e o histórico
Os filmes realizados a partir das experiências familiares dos próprios diretores, onde eles fazem a narração em primeira pessoa, já podem ser classificados como um subgênero do documentário. Apesar deles terem se proliferado, poucos realmente se sobressaíram para além de registros pessoais e muitas vezes dos seus umbigos. Talvez o mais emblemático aqui no Brasil seja o envolvente "Elena" (2012), da Petra Costa, que suscitou uma avalanche de obras que se ali se inspiraram posteriormente. O risco de levar esses projetos autorreferentes a frente são imensos, afinal, se todos os filmes carregam uma grande carga de subjetividade, imagina um baseado no registro cotidiano de sua família. Outro risco está na montagem desses filmes devido ao farto material proveniente da facilidade de estar perto do objeto filmado, ainda mais agora na era digital.
Na 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes eis que surge o documentário "Bem-vindos de novo", dirigido por Marcos Yoshi, construído inteiramente a partir da experiência familiar de Yoshi, profundamente permeada por diversos fluxos migratórios e econômicos, pois seus pais fizeram idas e vindas para o Japão no intuito de preservar a subsistência da família. O que mais me chamou atenção nesse vigoroso documentário é como ele se sustenta em um tênue pêndulo que ora pende para situações íntimas ora para momentos que beiram o épico.
Yoshi possui uma extrema sagacidade ao trabalhar a temporalidade na montagem. São tempos que insistentemente viajam ao passado, mas que brincam com a noção de presente porque o diretor nunca nos entrega como a situação dos personagens está no momento da montagem final, ficamos então sem saber temporalmente quando ele vai encerrar a história. Será com a morte do pai ou em um recomeço do diretor no Japão, ou ainda uma nova e longa separação física? Lembrando que o filme começa com o reencontro entre pais e filhos depois de 13 anos de separação. Esse é o lado épico dessa história, essa deambulação familiar que almeja sempre a sobrevivência desse coletivo, mesmo que separados. Para quem não possui nenhum descendente oriental essa ideia de separar para salvar o sustento da família beira o absurdo.
O diretor Marcos Yoshi amarra muito bem as crises econômicas à trama familiar, explora exemplarmente o fenômeno dekassegui, definido como os brasileiros que retornaram ao Japão dentro de políticas do governo japonês que estimulavam o ingresso na expansão industrial do país. Sensivelmente, Yoshi expõe o aspecto cruel dessa política de mecanização humana exploradora ao extremo da mão de obra, até causar deformidades no corpo e na alma. Não se deixar levar apenas pelas problemáticas íntimas faz de "Bem-vindos de novo" uma obra mais complexa ao costurar as contradições capitalistas ao próprio enredo.
Mas vale destacar que o elemento mais valoroso de "Bem-vindos de novo" está na delicadeza e o cuidado pelos quais Yoshi aborda a sua família. As distâncias tornam obstáculos perigosos para a convivência, pois ao final de 13 anos os pais e os filhos pouco se conhecem e Yoshi habilmente se utiliza do filme para promover tanto uma aproximação quanto uma jornada de autoconhecimento. Essa beleza está ali permanentemente a nos fisgar a cada nova cena. Os filhos (no caso Yoshi e as duas irmãs) sempre viveram no Brasil, e portanto, trazem mais brasilidade nas veias do que os pais. A cena em que isso fica evidente é a que Yoshi pede ao pai, com a câmera ligada, para tocá-lo. Essa cena diz muito sobre a educação japonesa, mas diz mais ainda sobre a nossa. O toque, esse atributo tão brasileiro inunda a tela e mostra o quanto que a cultura pode ser enriquecida por uma outra.
E a câmera de Yoshi se coaduna a tudo isso. Ela fica sempre no meio termo, ora distante ora calorosa, porém sempre parecendo medir qual a hora de estar próxima ou mais distante. A discussão dos pais no restaurante é realizada à distância, como se ele tivesse cometendo uma heresia como filho. Mostrar a vulnerabilidade é uma decisão difícil e que Yoshi parece dividir com os espectadores. Ao revelar as crises, e o pai ao que tudo indica é o ponto nevrálgico delas, há ali o esforço de mergulho e superação das mesmas. A narração em off feita pelo próprio Yoshi serve como um elemento a desenhar as relações e impor limites importantes para que o tom não se perca jamais. A voz de Yoshi está a resguardar e nos guiar, em um esforço constante de construir um sentimento de equilíbrio e segurança narrativa. Tem o tom adequado às imagens que foram selecionadas.
A força de "Bem-vindos de novo" reside na abordagem escolhida, no acerto de mostrar as vulnerabilidades e conviver com elas conscientemente, de fugir de uma narrativa autocentrada e preferir buscar nas relações as principais ações do filme. Yoshi se revela com uma sensibilidade rara ao tratar de temas tão íntimos e imediatos, que muitas vezes precisam serem refletidos antes de serem vividos. Há, a todo momento, um resgate da história da família, dos sacrifícios e das conquistas, dos momentos duros de trabalho contrastados com os alegres das férias e viagens. Um filme assim, tão calcado no pessoal, tem tudo para dar errado, mas Yoshi mostra que se tratado como autodescoberta, sem perder a dimensão histórica, ele pode ir longe, como é o caso desse "Bem-vindos de novo", uma pérola de documento entre o íntimo e o histórico.
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