Pular para o conteúdo principal

"A MARCA DA MALDADE", "A DAMA DE SHANGHAI" e "O ESTRANHO"


Welles e o noir 

Texto de Marco Fialho

A ousadia criativa de Orson Welles sempre esteve estampada nos filmes que realizou. Como diretor demonstrou muita versatilidade transitando por estilos e gêneros cinematográficos, mas sempre tendo o expressionismo como uma das referências mais visíveis. O noir se caracterizou inicialmente por subgênero do policial no cinema norte-americano em uma época em que os cineastas e técnicos da indústria cinematográfica (fotógrafos, cenógrafos, etc) europeia inundaram a América em franca fuga do regime nazista. O encantamento de Welles pelo cinema noir entrecortou a carreira e obras, em especial por uma atração pelas sombras intrínsecas ao estilo noir que fascinavam Welles. O que mais aproximou Welles do noir foi o apreço pela investigação calcada nos pequenos poderes, de como eles são exercidos e vivenciados em um universo muito próximo ao submundo. Nessa vertente noir vamos discorrer sobre três obras específicas ("A marca da maldade", "A dama de Shanghai" e "O estranho"), embora o aspecto noir apareça em outras também (caso nítido de O Processo). 

Em "O Estranho", Welles realiza uma obra muito bem acabada, embora uma das convencionais da carreira, um típico triller de espionagem, com traços marcantes de filme noir, em especial na concepção fotográfica, repleta de nuances de sombras e muitas filmadas à noite. Realizado em 1946, logo depois da Segunda Guerra Mundial (que findou em 1945), Welles interpreta um nazista refugiado como professor em uma pequena cidade norte-americana. Para ajudar no disfarce fica noivo e depois casa-se com a filha do juiz local. Mas a chegada de um outro membro do partido nazista atrai a atenção das autoridades do governo federal que descobrem a presença dele na pequena cidade. 


Apesar de "O Estranho" ser um bom filme de Welles, não está dentre os mais significativos de sua filmografia, e pode ser considerado como mais em que houve interferências de produtores na montagem final, ávidos por tirar as rédeas autorais de Welles da obra. Mesmo sendo narrativamente convencional, "O Estranho" foi filmado logo na sequência do pós-guerra e revela ser um Welles visivelmente contra o regime nazista. 

Já em "A marca da maldade" (1957) estamos em outra época histórica e vemos um Welles mais ousado. Logo no início do filme isso fica bem evidente, em um complexo plano-sequência de um pouco mais de três minutos, filmado em um grande estúdio com a câmera em grua acompanhando muita movimentação de personagens, carros, carroceiros e uma série de figurantes em cena. Tudo isso exigiu uma fina sincronia e um severo ensaio de atores e técnicos que resultou em um dos momentos mais felizes da história do cinema, a famosa abertura de "A marca da maldade", um evento só possível nessa época graças ao talento e coragem de um demiurgo que manejava como poucos a magia do cinema, ou melhor, da prestidigitação.


A trama de "A marca da maldade" acontece na fronteira México-Estados Unidos. É estabelecida uma dualidade entre um país rico e um pobre, que perdura até o final do filme. Mas Welles joga com a humanidade das personagens, e se a fronteira é um bom lugar para dividir, também o é para misturar e confundir, Welles sabe muito bem se utilizar dessas contradições territoriais e culturais. Ele interage habilmente os movimentos de câmera nesses conflitos, mexendo-a de um lado a outro, ora aproximando ora afastando. O íntegro investigador de narcóticos do México, Sr. Vargas (Charlton Heston), é casado com uma norte-americana (Janet Leigh), enquanto o desonesto e inescrupuloso chefe de polícia Hank Quinlan (Orson Welles) flerta com uma mexicana (Marlene Dietrich), dona de um suspeito bar no lado mexicano. Assim, Welles não se esquiva das contradições, trabalha nos meandros expondo a crueza das ruas. 

A Universal Pictures, a produtora de "A marca da maldade", montou o filme ao seu bel-prazer, à revelia de Welles e para a sua irritação. Hoje, há versões diferentes do filme circulando por aí, por isso é bom ficar bem atento de qual versão se está vendo. Para "A marca da maldade", Welles escreveu um relatório de 58 páginas contendo todas as agressões feitas na película pela produtora. Mas mesmo a versão que contem as muitas mutilações, a marca e o peso da direção de Welles pode ser sentida, pois a essa capacidade nenhum produtor com sua rudeza e ignorância jamais foi capaz de frear. Lembrando que Welles possuía uma força criadora indestrutível e indomável, que mesmo reprimida resplandecia e se impunha ferozmente. Em "A marca da maldade" a câmera aflita, angustiada, impaciente, está lá, os ângulos inusitados e baixos (em contra plongée), que mostram o autoritarismo do Capitão Quinlan também. O que jamais uma montagem poderá fazer é subtrair é o talento raro de Welles no ato da filmagem de saber onde colocar uma câmera e dirigir os atores, nem tão pouco apagar as sombras que produzia com precisão. A concepção noir com Welles atinge um outro patamar estético, pois vai além do uso das sombras e da caracterização das personagens, agrega a visão única de cinema que ele começou a alinhavar desde a estreia brilhante e precoce em Cidadão Kane. 


A construção do personagem do Capitão Quinlan, interpretado pelo próprio Welles, é inteiramente calcada nos clássicos filmes policiais norte-americanos: rude, inescrupuloso e assustador. Quinlan antes de tudo é uma autoridade que abusa do poder policialesco negociando com criminosos. Welles não resiste e cria Vargas (Charlton Heston) como um contraponto: ilibado, íntegro e justo. Estabelece-se uma dualidade entre os dois personagens, um tipo de acerto de contas entre México e Estados Unidos. Não à toa, a fronteira foi o lugar escolhido para a trama, em razão da hipótese de roubo das terras mexicanas pelo governo norte-americano e das rusgas entre os dois países. 

Mas há no filme ainda o contraste dado pela fotografia do experiente Russel Metty, que abusa do uso das sombras que muito enriquece a narrativa de Welles. Às vezes o uso das sombras serve apenas como personificação, como no início do filme, quando Vargas entra no México para fazer a investigação e vemos duas sombras não identificáveis atrás dele. Mas como regra em todo o filme noir, é no uso das sombras contrastadas que a obra se constitui, como nos rostos encobertos que revelam as personalidades nebulosas, ou nas cenas em que não conseguimos obter uma visão completa do quadro. As sombras, em alguns casos, trabalham a dupla personalidade das personagens e as suas contradições, algo nebuloso que apesar de não revelado de pronto deixa indícios, pistas.


Já discorremos sobre "O Estranho" e "A marca da maldade" e para fechar a análise sobre o noir em Welles, abordaremos "A Dama de Shanghai" (1947), obra com com uma das estruturas narrativas aparentemente mais convencionais da carreira do diretor, com um enredo complexo e recheado de reviravoltas. De qualquer maneira, a grande e impactante cena é guardada para o final, inclusive uma das mais bem realizadas do cinema, a do confronto na sala de espelhos entre os protagonistas. O filme consegue reunir em sua trama romance, drama, suspense, policial, tribunal e comédia, tudo isso belamente embalado pelo estilo noir, o qual Welles dominava como poucos, prendendo os espectadores até o final. 

É a partir de um crime, para ser mais preciso de um assassinato, que tudo começa a desenrolar, revelando a um só tempo valores morais das personagens e problematizações sociais prementes. Vale trazer à baila o pensamento do pesquisador Fernando Mascarello (História do cinema mundial, 2008, Editora Papirus, SP) quando discute o quanto os elementos típicos da narrativa noir:

"...cumpre destacar a complexidade das tramas e o uso de flashback (concorrendo para desorientar o espectador), além da narração em over do protagonista masculino. Estilisticamente, sobressaem a iluminação low-key (com profusão de sombras), o emprego de grandes-angulares (deformadoras da perspectiva) e o corte do big close-up para o plano geral em plongée (este o enquadramento noir por excelência). E ainda a série de motivos iconográficos como espelhos, janelas (o quadro dentro do quadro), escadas, relógios etc., além é claro, da ambientação na cidade à noite (noite americana em geral), em ruas escuras e desertas." (p.181-182) 


Outro elemento noir também presente em "A Dama de Shanghai" é a femme fatale, interpretada com contenção pela diva Rita Hayworth, no auge da beleza. Sedutora, misteriosa, carente, ela encanta o protagonista e a nós espectadores. Na trama, é casada com um velho milionário, que destoa frontalmente de sua beleza, charme e juventude. Novamente Welles volta a um dos seus temas preferidos, o da ambição, para narrar a ascensão e queda de indivíduos gananciosos.

A célebre sequência na casa dos espelhos configura-se como um dos finais mais fascinantes já feitos no cinema. Os reflexos infinitos dos personagens suscitam muitas interpretações, uma delas sobre a multiplicidade de imagens que cada indivíduo constrói para no convívio social. Ao promover diversos disparos que provoca a quebra e a consequente espatifamento de imagens aparentemente repetidas, Welles nos incita a pensar na necessidade de destruição dessas construções imagéticas artificiais e superficiais para que sobressaia algo de essencial no humano. Ao optar pela morte do marido rico e traído e da mulher adúltera, Welles os trata como se eles nada fossem que meras imagens, meros manipuladores. Há um regozijo moral pela ingenuidade, já que o personagem Michael é o único a sair vivo da sala dos espelhos. 


Não podemos esquecer a homenagem que Welles presta ao cinema expressionista alemão em "A Dama de Shanghai". Não casualmente, a última sequência se passa em um parque de diversões desativado. De "O Gabinete do Dr. Caligari" a "Um homem que Ri", passando por "O Gabinete das Figuras de Cera", as feiras e os parques de diversão são aspectos indissociáveis aos enredos e cenário expressionista, e Welles, como fã confesso que era escolheu esse cenário abandonado e sinistro como um tributo para encerrar "A Dama de Shanghai".          

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...