Texto de Marco Fialho
"A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim"
Airton Krenak
"O Sacrifício" é a obra crepuscular de Andrei Tarkovski, apesar de ser apenas o sétimo longa do diretor russo, que viria a falecer em 29 de dezembro de 1986, aos 54 anos. Nesse filme, observa-se a preocupação do diretor em deixar para a humanidade um testamento, algo para ser lido como o sacrifício que cada ser humano deveria fazer para salvar o mundo de uma hecatombe, aqui no caso, a nuclear, embora Tarkovski não desconsidere que mesmo com tudo sendo destruído ainda assim restaria uma esperança e ela estaria nas mãos da humanidade. Por isso, a primeira sequência é basilar ao deixar evidente a tarefa que o filho (ainda uma criança) recebe do pai: a de regar abundantemente uma árvore morta até ela renascer, tal como uma fênix das cinzas. Essa é a parábola que Tarkovski lega para todos nós nessa derradeira obra.
"O Sacrifício" é a segunda obra consecutiva de Tarkovski fora da União Soviética. Antes, ele havia filmado "Nostalgia" na Itália. Agora, o filme é inteiramente rodado na Suécia, terra de Ingmar Bergman e filmado também como uma homenagem a ele. Não bastasse a presença bergmaniana do ator Erland Josephson, de quebra ainda temos a fotografia de nada mais nada menos que Sven Nykvist, o profissional que mais realizou filmes com Bergman. Outra citação a Bergman está na história inteiramente assentada em um núcleo familiar, o que não nunca foi uma característica do cinema de Tarkovski. Embora a casa sempre estivesse presente nas obras de Tarkovski, a mesma evocava ideias bem diversas não só em relação a Bergman, mas também no próprio universo tarkovskiano. A casa, por exemplo, em "O Espelho" integra uma relação de persistência e desintegração do personagem com a própria memória (curiosamente, a casa também é tomada por um incêndio). Em "Nostalgia", a casa representa uma saudade infinita de Tarkovski do seu país, uma expressão de que a Rússia morava eternamente nele. A casa em "O Sacrifício" exprimia um status de bem-estar, de prestígio profissional conquistado. A destruição material da casa torna-se crucial do ponto de vista do pensamento tarkovskiano, basta lembrar que ela é posta em prática pelo próprio protagonista (Alexander).
Há um parentesco narrativo que aproxima "O Sacrifício" de "O Espelho", em especial a falta de fronteiras entre sonho (pesadelo seria mais coerente aqui) e realidade, o que impacta na percepção da trama, sempre condicionada por um embaralhamento entre os temores do protagonista Alexander e os fatos que marcam a comemoração do seu aniversário. Por isso, para uma compreensão mais ampla de "O Sacrifício" deve-se considerar a ideia de fim do mundo como um poderoso pano de fundo, ou como algo que pairava terrivelmente sobre a humanidade desde o final da Segunda Guerra Mundial. Tarkovski inseria no filme as angústias que tinha em relação aos rumos do mundo, da concepção de que o avanço tecnológico desacompanhado de uma visão humanista consequente não lograria em muita coisa.
A transmissão e o acesso ao conhecimento estão no cerne desta obra de Tarkovski e o personagem do carteiro Otto possui um importante papel em "O Sacrifício". Ele está ali para mostrar o quanto o conhecimento não está restrito a uma elite econômica. Otto foi um professor de história que ainda se sente útil ao coletivo ao trabalhar como carteiro. Alexander diz: "no princípio era o verbo...", isto é, na origem de tudo está a palavra, o diálogo. Otto, por sua vez, presenteia Alexander com um mapa da Europa medieval e a imagem mostra os povos mais próximos entre si que nos dias de hoje. Tarkovski está atento a como os homens quanto mais sofisticaram e aprimoraram os aparatos tecnológicos mais se afastaram um dos outros. Para ele, o conhecimento se alargou, mas os privilégios também. O "ter" tornou-se o primordial, fazendo do "ser" um mero apetrecho dele. O Século XX sobejou a ideia do supérfluo e do consumo, alijou e subjugou o essencial. Tarkovski demarcou em seus filmes esse anacronismo moral que impeliu o homem a um cataclismo espiritual desenfreado.
Como contraponto a todo esse avanço desproporcional de tecnologias que permitem o aniquilamento do mundo enquanto espaço vital (e hoje podemos expandir esse fim do mundo pela própria imagem da destruição das reservas naturais), Tarkovski lembra sempre do papel das artes como um elemento a inundar o mundo com esperança e beleza. Não casualmente, Leonardo Da Vinci e Bach estão presente em "O Sacrifício". Com eles o homem mostrou que podia mais, que podia inspirar a humanidade com percepções únicas e triunfantes. É o retrato de um homem criativo, envolvente e sobretudo inspirador. "O Sacrifício", assim como toda a obra de Tarkovski estão nesse mesmo patamar estético, arremessam o homem para o cume das aspirações espirituais, nos fazem ressignificar o mundo a partir do que elas ensejam.
Quando filmou "O Sacrifício", Tarkovski ainda não sabia que estava para morrer, que só descobriu em dezembro de 1985. Ele morreria um ano após começar a tratar o câncer na cabeça. Nos seus diários está registrado todo o sofrimento e pressão que enfrentou para poder trabalhar conforme acreditava. Não queria realizar filmes para um governo ou sistema político, queria filmar de acordo com crenças que duramente edificou para si mesmo. Tinha muitos projetos idealizados, que sabia que jamais sairiam do papel, alguns ambiciosos de transpor mestres da literatura para o cinema, tais como Thomas Mann, Dostoievski e tantos outros. Mesmo ponderando tudo isso, "O Sacrifício" pode ser visto como um poderoso testamento deixado para todos nós, uma espécie de carta a ser aberta após o fim do mundo, embora o melhor seria abri-la o quanto antes.
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