A vitalidade do soul brasileiro
Texto de Marco Fialho
Depois de perder a exibição de "Trem do Soul" em alguns festivais de cinema, enfim consegui assisti-lo no Mirada Cine Fest, mesmo que com um pouco atraso. O filme cumpre uma das vertentes fundamentais do gênero documental, que é a de resgatar aspectos sociais e históricos que marcaram uma certa época. Sabemos que o tempo e os modismos são implacáveis com determinados acontecimentos do passado. Por isso "Trem do Soul" se faz presente e onipresente ao trazer à baila um tema caro à vida carioca, e mais que tudo, da vida suburbana. Esse é um dos acertos do filme: localizá-lo em seu território mais rico e fértil, o da periferia e da Baixada Fluminense. Logo na primeira cena ouvimos o som do trem, para logo a seguir assistir imagens tipicamente suburbanas, das esquinas e de pessoas transitando na estação de Rocha Miranda. São 50 anos de história do soul brasileiro registrados em quase 1 hora e meia de filme.
Mas felizmente muitos outros méritos podemos vislumbrar nessa obra. Um deles está na escolha de como narrar o documentário. Clementino Junior e Milena Manfredini (roteirista e pesquisadora do tema) privilegiaram dar a voz aos próprios protagonistas dessa empolgante cena cultural e artística, como compositores, cantores e dançarinos desse ritmo contagiante do Soul, que explodiu aqui no Brasil no final dos anos 1960 com James Brown e sua bela e inusitada dança, que coloca o corpo inteiramente à disposição de um ritmo vibrante que sequestra a alma dos ouvintes. Clementino habilmente vai juntando de depoimento em depoimento a paixão dos personagens pelo soul, de como esse som ressignificou vidas e forjou identidades.
Somente algo que vindo de dentro, das profundezas, para poder mobilizar as pessoas em uma expressão tão singular e potente. A dança do soul é por si libertadora, faz emergir uma força de avassaladora presença, é política em si e está em simbiose com o próprio canto. "Trem do Soul" evoca essa resistência que vem da alma e provoca o corpo a agir em forma de dança. Fazer do corpo protagonista do filme é outro acerto do filme, ter clara essa consciência de que a alma se expressa pelo corpo, tornando-se ou revelando a essência dessa música que é mais que música, é um elemento de integração e comunhão entre os que a admiram coletivamente. Não casualmente, a sua força está no baile, nessa reunião que é ao mesmo tempo festeira e de congraçamento.
Muito importante como o visual dos personagens, o figurino e penteados também diziam e dizem a respeito dos adeptos do soul. A palavra adeptos vem bem a calhar, já que a maneira de compor o visual fazia parte de uma maneira de viver a vida, de impor uma forma de existir ao mundo. "Trem do Soul" constrói-se fundamentalmente a partir da presença desses personagens. Assim, "Trem do Soul" promove algo crucial para um documentário, evidenciar a memória, revirá-la, remexê-la para que não esqueçamos nosso viver ou até mesmo para despertar o sentimento de descoberta de quem não viveu aqueles tempos. Muito bom ouvir sobre aquelas festas Hi-fi contada pelos próprios expoentes como Sandra de Sá, Gerson King Combo, Dom Filó, DJ Neném, Carlos Dafé e tantos outros que marcaram a vida suburbana de décadas.
Mas o documentário de Clementino Junior não dorme no ponto, assim como os entrevistados que identificam no canibalismo do mercado a principal causa da perda de espaço do movimento soul brasileiro, que delinearam com a disco music um novo formato para a música black. Como todos dizem, é um combo que envolveu novela, música, artistas novos e cinema. A massificação funciona dessa forma mesmo, para algo fazer muito sucesso todo o resto precisa sucumbir. Porém, o que é verdadeiro não é fácil de apagar e o documentário de Clementino Junior está aí para provar isso.
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