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STALKER (1979) Direção de Andrei Tarkovski

Sinopse: Em um futuro indefinido, um guia (stalker) conduz dois homens conhecidos como Escritor e Professor a uma área proibida, lacrada pelo governo, a "zona". Dentro dela há uma usina desativada onde existe um aposento que possui a propriedade de realizar os desejos de quem pode entrar nele.

Texto de Marco Fialho

"A arte não deve apenas refletir, mas também transcender; seu papel é fazer com que a visão espiritual influencie a realidade..."

                          Andrei Tarkovski, em 'Esculpir o tempo"


"...a fraqueza é grande, 

enquanto a força é nada..."     

                                       pensamento de Stalker


"... é melhor uma felicidade amarga, do que uma vida apagada e triste." 

                                     fala da esposa de Stalker


Dentro da filmografia de Tarkovski, "Stalker" (1979) pode ser vista como um ápice tanto em relação às ideias de cinema quanto as de filosofia. E curiosamente é o último filme dele realizado na União Soviética. "Stalker" funciona de uma vez só como um manifesto e um testamento cinematográfico de Tarkovski ao mundo, onde está concentrado o cerne do seu pensamento sobre o cinema. Tudo em "Stalker" beira o fascinante, desde a mágica fotografia de Alexander Kniajinski, que intercala linda imagem em sépia com momentos de intensa cor, até a trilha musical belíssima e sensível de Eduard Artemiev, sem esquecer da cenografia impecável de A. Merkulov. 

Logo na sequência de abertura Tarkovski anuncia silenciosamente um convite aos espectadores. A câmera avista uma porta entreaberta e lentamente se aproxima. A sensação que temos é que a câmera força a entrada como se adentrar ali fosse algo do plano do necessário. O tom invasivo e voyeurístico está lançado, se você continua a assistir é por consentimento. Uma viagem a um universo idiossincrático está lançada, vamos embarcar nela? A imagem de um aposento imenso, alto, desproporcional perante uma cama que mesmo sendo grande torna-se diminuta para o contexto. As paredes estão manchadas, desgastadas, notoriamente precisa de uma reforma. A janela também está caindo aos pedaços. O som indica que algo está a deixar objetos a trepidar e a fazer um copo andar sobre uma pequena mesa, percebemos que se trata de um trem. A casa está próxima a um trilho ferroviário. Após ouvir a passagem do trem, um homem levanta sorrateiramente da cama (o Stalker), a filha continua a dormir e a esposa acordada, finge também dormir. Ele põe a roupa, sai do quadro, mas logo a seguir se coloca em close na porta do quarto, e antes de sair coloca a porta outra vez entreaberta. Ele sai de quadro e avistamos a esposa a levantar de supetão da cama. Agora Stalker está em uma cozinha muito ampla e sem mesa. As paredes estão sujas ao extremo, tudo é rústico e pobre em demasia. Uma discussão se inicia entre ele e a esposa. Descobrimos que ele além de desempregado realiza um trabalho clandestino (de levar pessoas à "Zona", local proibido pelo governo de ser visitado e onde o próprio Governo teme entrar) que o pode levar novamente à prisão. Ele sai de casa enquanto ela esbraveja, chora de nervoso e diz que a doença da filha era uma maldição. Ao fundo, vemos a filha agora acordada sentada na cama. O preto e branco dessa sequência é tão lacerante quanto à direção de arte (assinada pelo próprio Tarkovski) a acentuar o frio e a sujeira da residência do Stalker, e que marcará o filme até a entrada na região proibida. O sombrio presente aí, estará a inebriar cada pedaço de película e essa sensação percorrerá cada segundo até o final do filme.


Descrevo a sequência inicial por ela ter uma importância bem maior do que aparenta. É a primeira vez que no filme ouviremos o trem e o impacto dele nos objetos da casa. Nela há ainda uma síntese quase premonitória acerca do personagem Stalker. Há nele uma busca incessante, essencial e filosófica. Sua jornada o levará ao autoconhecimento, mas há uma descoberta fundamental, que não se chega a ele sem o conhecimento do mundo, afinal até o que se denomina de metafísico em Tarkovski está impregnado do substancial, de um elemento telúrico. E o mundo, aos olhos de Tarkovski, consegue ser deveras simples e complexo ao mesmo tempo, pois muito do que almejamos pode estar tão próximo de nós que sequer o detectamos. "Stalker" tem essa potência, de vislumbrar que para além da distância física há a da percepção; e antes de tudo, há a possibilidade da beleza permeando às ações humanas. Um objeto, ou uma pessoa, pode estar há anos perto de nós sem que sequer o percebamos. Assim Tarkovski trabalha nossos sentidos, por estímulos, para que olhemos para o mundo a partir do inalcançável que nossas vistas não apreendem. Um tipo de óculos mental desanuviador e invisível, voltado para a nossa preciosa capacidade perceptiva.                  
Antes de tudo, "Stalker" é um filme sobre uma viagem que começa nos personagens e se encerra em nós espectadores, que se inicia em espaços às vezes indistintos ou indefiníveis (exterioridade), quase sempre em ruínas e termina no mais profundo eu (interioridade), uma espécie de road movie às avessas, pois o intuito não é crescer a partir das experiências, mas sim caminhar em si mesmo e buscar o sentido da nossa existência na reciprocidade. Sim, para Tarkovski a existência plena somos nós e os outros, esse tudo e todo ao mesmo tempo agora, uma busca incessante de deslocamento entre o indivíduo e o coletivo, e vice-versa, sem um acachapar o outro. Daí vinha a sua maior divergência com o Estado soviético, o que fica claro na leitura dos seus diários (claro que a briga dele era contra um Estado que colocava os mecânicos e burros aparatos burocráticos - e pior do que a burocracia em si só mesmo os burocratas - que alicerçavam o sistema, o obliteravam, se postando acima de tudo e todos).


É em "Stalker" que Tarkovski atinge uma expressão poética surpreendente ao conseguir que cada imagem e som (inclusive os angustiantes silêncios) ganhe uma força descomunal em nós. Esse é um filme sobre o nós que habita no outro. Afinal, o mistério que habita nas obras de Tarkovski é o que nos impulsiona amar o cinema como a implosão da literalidade, a entendê-lo como instância instauradora com uma temporalidade própria, e aí encontra-se o ponto nevrálgico onde reside a essência deste diretor. As paisagens vislumbradas nos filmes tornam-se fundamentais no escopo da obra tarkovskiana, sem considera-las não pousaremos no seu território mais fértil. As paisagens são reflexos da interioridade humana, do profundo abandono que nos colocamos em mundo respaldado pela vaidade, egoísmo e a falta de empatia. É bastante significativo Tarkovski chamar os personagens pelas alcunhas escritor e professor (no livro dos irmãos Strugatski não era assim), pois isso nada mais faz do que revelar a titulação vaidosa, a perda da essência desses saberes e as práticas que a envolvem. O Stalker considera que esses são os seres ideais para conhecer a "Zona" e extrair dela algo poderoso para a humanidade, capazes de atribuir um sentido, mas a cada novo passo isso vai se tornando impossível e improvável. Eles nada mais são do que duas personalidades presas em vaidades, ligadas às vazias ideias de sucesso, prestígio e destruição.

Cada obra de Tarkovski exige uma espécie de transposição hermenêutica, pois não é possível apreendê-las apenas pela ótica da objetividade, há um lastro relacional que não está posto apenas nas imagens ou nos sons, já que os elementos cinematográficos não se consubstanciam por mero encadeamento lógico, há um quê de dialógico entre as diversas camadas que vemos e ouvimos (e até fora delas), o sentido não está dado, ele precisa ser construído por cada um de nós, em um exercício hermenêutico mesmo. O cinema de Tarkovski propõe uma compreensão metafísica das coisas e da humanidade. Essa ontologia é fundadora do seu cinema e estrutura a existência filosófica das obras, de tal forma que a estética de Tarkovski não pode ser pensada sem esse aspecto filosófico mais amplo. Para ele, os grandes artistas são antenas que assinalam ao mundo uma verdade espiritual. Tolstoi, Dostoievski, Thomas Mann, Beethoven, Bach, Alexander Pushkin, Bruegel, Picasso, Bergman, Bresson, Antonioni (apenas para citar alguns) expressaram e potencializaram de tal maneira a humanidade que torna impossível pensá-la ignorando-os, e por isso mesmo se tornaram permanentes patrimônios culturais.      


Podemos dizer o cinema de Tarkovski extrapola o próprio sentido que comumente se atribui ao cinema. A sua obra está para além não só da narrativa em si, mas também das caixinhas epistemológicas impingidas ao cinema, já que nela está contida uma visão supra artística. Claro que a maioria dos cineastas podem igualmente ser analisados nessa perspectiva, mas há algo que está no orgânico do próprio pensar de Tarkovski, algo da ordem matricial, que condiciona o todo estético que está ali apresentado na tela. Trata-se de um arcabouço poético, filosófico, estético que não se resolve apenas no filme em si, um quê de espiritual sedimentado e não redutível apenas pela religião, mas que de certa maneira a amplia, ainda mais porque a religiosidade adquire uma feição poética que também habita na relação iconográfica que estabelece com o público, já que há busca por uma criação imagética própria e potente, um desejo de escritura sobre o mundo, de intervenção e reinvenção. Cada imagem tem uma substância, se relaciona com a realidade, ou melhor, se articula a partir dela e para ela. Vemos o mundo com a sua ruína, pois é por um processo intrínseco que uma outra humanidade terá que emergir e a arte existe para isso mesmo, fazer eclodir o que ainda não existe e rechaçando o que existe de podre em sua estrutura física e espiritual.    

Até o momento falamos bastante de filosofia em "Stalker", e continuaremos, afinal, ainda precisamos falar da "Zona", sim, esse lugar imerso na dúvida e que revela o medo do homem pelo desconhecido. Talvez o lugar tenha sido criado após a queda de um asteroide ou quem sabe seja um lugar onde seres extraterrestres tenham pousado sua nave. Bem, talvez isso pouco importe para Tarkovski, pois como sempre faz nas adaptações que realiza da literatura, em especial as de ficção científica, o elemento da exterioridade influi menos do que a interioridade dos personagens. Em "Stalker" não é diferente e repare como Tarkovski convida os próprios autores da obra literária "Piquenique à beira da estrada", os irmãos Arkadi e Bóris Strugatski para assinar o roteiro, apesar de não abrir mão em supervisionar tudo de perto. 


Há uma interessante dissertação na Universidade Federal de São Carlos (UFESCar), de Paulo Afonso Monteiro Delfini que trabalha as semelhanças e dessemelhanças entre a versão literária e a cinematográfica. Para ele, a semelhança mais visível está nos conceitos de "Zona" e "Stalker". Quem conhece minimamente a obra de Tarkovski sabe o quanto ele se utiliza da literatura como inspiração, como ponto de partida e sem abrir mão da concepção de cinema que estava a desenvolver. Assim, a ideia de manter o conceito faz sentido já que sabia de antemão que precisava destruir os elementos literários para adaptá-los às suas ambições cinematográficas. Por isso, discutiremos esses dois conceitos que sedimentam a ideia do filme.

Logo na chegada dos três na "Zona", o professor diz para o escritor sobre o Stalker: "...ser stalker, em alguma medida, é um tipo de vocação." Mas qual seria essa vocação? A de levar as pessoas para um lugar especial, dentro da "Zona", onde os desejos se realizariam? Mas como saber quais seriam os desejos de cada pessoa? O perigo dessa ideia é imensa para qualquer projeto de poder. O desejo é algo a ser interditado em qualquer sociedade que almeja controlar as subjetividades. Por isso, em "Stalker", as perguntas se amontoam, abundam-se, como se a humanidade estivesse mesmo incapaz de fazê-las, vivendo apenas de respostas preestabelecidas, automáticas e sonhos de enriquecimento efêmeros, vazios. Os stalkers sãos seres dotados de uma busca e de uma percepção acerca do aprimoramento espiritual da humanidade. E o Stalker quer levar à "Zona" pessoas especiais que podem ser transformadas a partir dessa experiência. Mas será que isso seria possível ou já estamos tão imersos no vício das ambições pessoais e nas vaidades que talvez jamais poderemos apreender a força espiritual existente na "Zona". Há um visível desgaste emocional do stalker, sempre frustrado e decepcionado quando descobre as verdadeiras motivações e a maneira como os convidados encaram a "Zona".   


Mas afinal, o que seria essa "Zona"? Tarkovski habilmente deixa essa pergunta no ar. Ela foi proveniente de um impacto de um meteorito ou seria ela resultado de uma outra força misteriosa, talvez até extraplanetária? Como diz o professor, pode ser qualquer coisa. Para Tarkovski o mais crucial dessa "Zona" está no potencial intrínseco "uma mensagem para a humanidade... ou um presente." A "Zona" é um lugar interditado pelo governo, mas no qual o próprio governo tem medo de entrar. Como diz Stalker: "a 'Zona' é um sistema complexo, de armadilhas. Todas são mortais. Não sei o que passa aqui quando não tem humanos. Mas quando aparecem pessoas tudo começa a mexer. As antigas armadilhas somem, surgem novas. Os lugares seguros ficam intransitáveis. E o caminho, ou é fácil ou fica infinitamente complexo. É a 'Zona'. Às vezes, tem até seus caprichos. Mas ela é em cada momento, como a fizermos com o nosso espírito... ela deixa entrar quem já não tem esperança, os infelizes! Mas até o mais infeliz dos infelizes morrerá, se não tomar cuidado." Há nessa definição algo primordial: o quanto há de base espiritual como definidor desse estranho mundo. E se a partir dessa definição observarmos o mundo por esse ângulo proposto por Stalker? As imagens revelam uma severa ambiguidade. Há elementos de natureza em estado o mais selvagem possível associados à ruínas edificadas pela humanidade, restos de blindados, metralhadoras, corpos humanos mortos, carros, ladrilhos, casas, enfim, uma infinidade de coisas e objetos que evocam a presença humana. Sabe-se do apreço de Tarkovski pelos quatro elementos da natureza, e, em "Stalker", a água é o que mais chama atenção, especialmente acentuada pelo brilhante trabalho de som de V. Sharun. O elemento água está muito presente, e até mesmo abundante, nos ambientes internos da "Zona". Há quem associe isso a algo uterino, mas tenho dúvidas, pois se por um lado a água pode significar ou remeter à segurança, por outro, pode também evocar instabilidade e incômodo quando está a impregnar ambientes fechados, se materializando tanto em poças e piscinas oníricas assim como em goteiras ou até em uma inusitada e improvável chuva.

A forma como Tarkovski pensa o tempo e o espaço são fundamentais em "Stalker". Os planos longos, a câmera que se move de modo a expandir a sensação de duração das ações são cruciais para por em suspenso o próprio tempo na "Zona". Quanto tempo dura essa viagem? Um dia, dois ou uma semana? Em "Stalker", o tempo está condicionado pelo sujeito e pelo público que fica com a impressão de que o tempo ali é interminável e jamais unidimensional. O espaço por sua vez também é indeterminado, não sabemos bem onde fica essa "Zona", qual a sua dimensão, mas podemos sentir que há nela algo de profundamente telúrico. As cores igualmente adquirem uma importância na ambientação de "Stalker". Percebemos que na "Zona", ao contrário da vida cotidiana (toda em sépia, e de certa maneira assustadora), tudo é colorido. A cor estabelece uma clivagem entre a vida e esse outro mundo chamado "Zona" (apesar que no final do filme a cor no mundo é restaurada). Os sonhos também são em preto e branco (também fazem parte da vida?) mesmo quando acontecem na "Zona". Esse não-lugar, que é a "Zona", nos remete permanentemente ao lúdico, e é justamente disso que falarei a seguir. 


A pesquisadora Bernadette Lyra examina "Stalker" no precioso livro "O jogo dos filmes" (lançado em 2018 pela Editora 'a lápis'), sob o viés do lúdico e repara o quanto o filme se estabelece por meio de um jogo (que se assemelha a uma brincadeira de criança) de jogar uma porca (uma espécie de parafuso), ao léu, para se definir o próximo passo a ser dado pelos personagens. Lúdico este que volta ao final na longa sequência onde a filha do Stalker está sentada à mesa enquanto copos deslizam pela mesa. Teria ela poderes sobrenaturais? Tarkovski parece promover uma brincadeira na percepção dos espectadores, afinal, logo que o primeiro copo cai no chão, o som do trem começa a aparecer e a fazer tudo tremer com uma intensidade bem maior do que antes, o que nos lança uma interrogação se a menina possuía algum poder especial ou se o truque era dado pelo frisson provocado pelo trem. Antes, quando a menina ainda está a ler o livro, ouvimos apitos longínquos que anunciam a vinda do trem. Estaria ali a menina, em um momento de epifania, simplesmente a apreciar o balé dos copos? A aparição não diegética do coro da nona sinfonia de Beethoven parece sugerir isso. E o fato da cena ser a única colorida de todas que aparecem a casa, também. Mas Tarkovski gosta mesmo de lançar ardis filosóficos em seus filmes. Em quase todas as suas obras aparecem cães que do nada são inseridos na vida dos personagens. E isso não é casual. Tarkovski parece querer nos dizer o quanto os cães são capazes de ações solidárias e associativas às pessoas, guiados apenas pelo instinto. Se por um lado o excesso de racionalização da humanidade foi capaz de levá-la a um aprimoramento tecnológico impressionante, por outro lado, em paralelo, assumimos a desconfiança perante o outro. Perdemos o sentido de comunhão em prol de um individualismo e um apego material que desagregou a humanidade. A epifânia em Tarkovski, em suma, revela a possibilidade da beleza existir na própria vida cotidiana, além de uma demonstração de fé na humanidade.

No quarto da "Zona", que seria o lugar onde os desejos do visitante se realizariam, chama atenção a maneira como Tarkovski lida com os enquadramentos. Inicialmente, a câmera está de frente para uma antessala do quarto, em um ângulo no qual não o vemos. Porém, a seguir o enquadramento se modifica e a câmera se posiciona dentro do quarto, no lado oposto da entrada. Nesse ângulo, vemos os três personagens sentados, de longe, na entrada da sala (nenhum deles adentra o quarto). Tarkovski oferece então uma imagem poética e ao mesmo tempo desoladora. Os três estão apequenados perante o quarto, completamente paralisados e acovardados perante o desafio de entrar ali e encarar a si mesmos. Porco-espinho, o mestre de Stalker, entrou no quarto e sucumbiu ao se suicidar dias depois. No quarto, a existência humana se descortina como frágil, e Tarkovski, nesse instante, nos brinda com uma improvável e intensa chuva, que parece nos dizer o quanto somos nada perante a grandiosidade e a beleza da natureza.


"Stalker", mais do que uma construção metafórica se configura como um artifício poético de Tarkovski, que realiza um road movie nada convencional, de cunho metafísico, e onde as experiências anteriores não servem de referência para cada nova caminhada, já que um novo desafio sempre se impõe. Essa ideia com notórias inspirações zen budista está presente na concepção do filme, no conceito de circularidade intrínseca à obra, desde o som do trem até as sequências do bar montadas no início e no fim do filme, assim como a presença da família do stalker, fora alguns elementos e discursos circulares postos na narrativa. Outro elemento marcadamente circular é a da "Zona", que os três circundam, inclusive para adentrar nela em estruturas tubulares, que muito lembram o círculo zen. A noção do circular é fundamental ao inserir a ideia do retorno perpétuo à origem e instaurar um conceito de infinitude (ou de eterno recomeço e renovação espiritual). Seria então a "Zona" um organismo tal como as nossas vidas, onde buscamos sentidos fora de nós ao invés de dentro de nós? Stalker, em certa hora diz que "o que acontece na 'Zona' não depende dela mas de nós!". Há em "Stalker" um raciocínio que começa em nós, se estende ao mundo exterior e volta novamente para nós.

Bom lembrar que Tarkovski não pensava o cinema por subterfúgios alegóricos (disse isso em diversos momentos em "Esculpir o tempo"). Nos Diários, ele cita um poeta japonês, Shiko Kagami (1665- 1731), que muito expressa suas ideias sobre o tema: "O belo nasce de si mesmo no momento oportuno... É importante sentir esse momento..." (p.121) Pensamento que reafirma a ideia de Tarkovski sobre a filmagem como registro do tempo, a revelar uma verdade inerente a cada momento. Ainda nos Diários, em janeiro de 1975, Tarkovski realiza uma interessante reflexão sobre a possibilidade de filmar "Stalker" e os caminhos do seu cinema: "O sucesso de 'O Espelho' convenceu-me mais uma vez da justeza das minhas suposições, que associava o problema da importância da experiência pessoal emocional ao sentido da narrativa no cinema. Talvez o cinema seja a arte mais pessoal, mais íntima. Só a verdade íntima do autor no cinema será sentida pelo público como um argumento incontestável" (p.136).


Construir um cinema a partir de si mesmo! Essa definição abarca evidente a noção de autoria que foi a base da maioria do cinema do pós-guerra. Mas se refletirmos atentamente a partir dessa ideia lançada por Tarkovski, chegaremos a uma visão que o diferencia da maioria dos diretores que buscaram registrar essa pessoalidade no cinema. Em Tarkovski, a nosso ver, apaga um rastro vaidoso que tanto marcou os conceitos de autoralidade, incluindo aí a mais célebre que é a do crítico francês Andre Bazin (que desenvolveu uma ideia sobre o tema partindo dos diretores hollywoodianos que eram apequenados por produtores, Estúdios, e até por atrizes e atores do Star System reinante). O locus da autoralidade tarkovskiana está incrustado na intimidade e em "Stalker" muito dessa relação pode ser revelada mais explicitamente. O quarto da "Zona" é significativo nesse ponto. Como diz Stalker, nele está a esperança. Mas afinal, esperança de quê? A grande questão está no fato de muitos chegarem ali e não terem a coragem de entrar, pois ali terá que retroagir a tudo que fez na vida e fazer essa "viagem" pode ser tão perigosa quanto um tiro na própria cabeça. O quarto traz em si a noção de tempo, ali o mergulho em si no tempo mostrará muita coisa, ou não. O medo maior da humanidade está em si mesmo. O medo de sucumbir perante uma mirada no espelho. É lapidar a pergunta que Stalker faz ao Professor e ao Escritor quando eles estão na "Zona": "poderá haver felicidade à custa da infelicidade alheia?" Creio que a pergunta pode ser estendida a todos nós e já induz a própria resposta.        

(Claro que fazemos aqui um exercício teórico, que não anula o próprio fluir de quem apenas se deixa levar sensorialmente por "Stalker" (ou qualquer outra obra do diretor), pois acredito que isso seja o melhor a ser feito por cada um. Essa reflexão só se faz "útil" para depois da imersão, com a intenção de não anular a experiência, apenas expandi-la para quem assim o desejar após a inebriante viagem pós-fílmica. Como qualquer filme, nada substitui a experiência, nem mesmo uma boa análise. O viver o filme é inigualável e maravilhosamente incomparável. Isso deve ficar o mais claro possível. A nossa escrita é mais uma viagem para os que gostam da confrontação de sensações, de querer saber como outros receberam o filme (o exercício da crítica, em última instância, deve permitir justamente isso)).              

Revisto em outubro de 2021, em uma cópia blu-ray, durante a pandemia do Coronavírus. 


Comentários

  1. Marco, assistirei "Stalker" no Cine Arte UFF 5a ou 6a. Depois de te ler, meus sentidos estarão mais e mais aguçados para essa viagem.
    Com certeza, depois, voltarei à análise minuciosa e profunda que instiga o mergulho.

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  2. Q maravilhaaaaaa ler teu texto! É como adentrar ao filme acompanhando as personagens. Não vi Stalker. Vi outros do Tarcovski, mas faz muitoooooo tempo. Vou buscar vê-lo. É a Márcia. Abraço

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