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SANCTORUM (2019) Direção de Joshua Gil



Sinopse:

Em uma pequena e isolada cidade, cercada por montanhas cobertas de árvores, vive um menino e sua mãe. A vida tradicional foi extirpada desde que a cidade foi pega no fogo cruzado da guerra entre militares e os cartéis. Com poucas oportunidades de trabalho e sem dinheiro suficiente para se mudar para outro lugar, a mãe arruma um emprego cultivando maconha para os cartéis. Um dia, ela não volta do trabalho. Tomada pela tristeza, a avó diz ao menino que vá para a floresta e reze ao sol, ao vento e à água para que eles façam sua mãe retornar ilesa.

À espera de um milagre

Texto de Marco Fialho

"Sanctorum", uma inusitada coprodução entre México/República Dominicana/Catar, é um filme angustiante. Não há um instante sequer em que o clima tenso não se imponha sobre os espectadores, e visivelmente, essa foi uma intenção deliberada do diretor mexicano Joshua Gil, que nos convida a nos colocar do ponto de vista dos camponeses de uma pequena cidade rural nas montanhas do México, em uma história que estes estão entre as impiedosas milícias do narcotráfico e as tropas de um governo corrupto. Há uma interessante dose de realismo fantástico, mas talvez seja mais adequado chamar de realismo etéreo, um tipo de realismo que flerta com um quê de sublime, de uma espécie de fuga do real que nos chega a partir dele mesmo. A aspereza do real se dá de tal maneira, que um elemento celestial é acionado para que o ar fique minimamente respirável.

É oportuno atentar para o significativo papel da camada sonora neste "Sanctorum". O som nos arremessa sensorialmente na trama, mas como ele não vem da cena (ele não é diegético) ele funciona como um aviso de que algo de muito perigoso está para acontecer a qualquer momento, que tudo está sempre por um triz, por um detalhe. O desenho de som arquitetado por Sergio Díaz é preciso, e sem ele, "Sanctorum" perderia muito de sua força, assim como a música original milimetricamente criada por Galo Durán. 


As próprias falas e narrações são cuidadosamente pensadas pelo roteiro escrito pelo próprio diretor Joshua Gil. As falas dos personagens são dispostas sempre em ambientes fechados das casas e tabernas. Nos ambientes abertos nenhum camponês faz uso da palavra, como se esse mundo exterior representasse contraditoriamene uma prisão. O que predomina é o som dos rádios sempre a comunicar os perigos e cuidados eminentes. O medo está espalhado em todos os lugares e simboliza o tom opressivo vivido por essas pessoas simples. As cabeças baixas e os silêncios dos personagens campesinos se acumulam durante os 83 minutos do filme. Muitas vezes o que escutamos são os sons das armas sendo engatilhadas e os seus secos estampidos. Nessa lei do cão, não se discute nada, apenas há a frieza da execução. E quem se atreve a discutir morre exemplarmente. Corpos são assassinados e queimados em seguida: esse é o mundo feroz da violência dos cartéis que "Sanctorum" nos apresenta.    

Para pensar toda essa brutalidade, Joshua Gil expande a temporalidade para além do presente. O professor lembra a seus jovens alunos da revolução mexicana e a importância dela para os direitos dos trabalhadores em geral, fala em regeneração das ideias para a eclosão de uma nova sociedade. Quando fala das leis pelas quais a revolução lutou, o rádio anuncia mais mortes de civis, mais um genocídio impetrado pelos cartéis. Mais uma vez é o resgate da memória, das lutas que foram historicamente sendo esmagadas pela crueldade dos poderosos que arruinaram o povo com ambições financeiras abjetas e que levaram o país para a atual situação social. Os rituais ancestrais ainda praticados pelos camponeses representam também um resto de esperança, que algo de mágico vindo do conhecimento e da cultura popular seja preservado para um futuro próximo.


Em "Sanctorum", no cotidiano massacrante dos campesinos, a cor que predomina é a neutra, cor de terra e cinza, como a dos ambientes tristes das habitações escuras e sem vida, das cavernas que levam para a escuridão profunda. Até o verde da floresta se acinzenta, parece não ter brilho. A única luz que vemos vem de entidades da ancestralidade das tradições ameríndias, pois elas soam como o milagre, o sanctorum que pode salvar a todos. O som das rezas e as luzes das divindades são as únicas esperanças nesse universo onde a violência dos cartéis e do governo injusto predominam. Apesar das estrelas estarem sempre em destaque no céu, na terra firme mal se dá para admirá-las, pois o sangue do povo escorre, avermelha e macula os belos rios desse santuário ecológico mexicano.    

Ali, todos caminham como se esperassem a sua hora, pois essa parece ser a única coisa a fazer, pois a sensação é de que algo terrível está sempre prestes a acontecer. O filme de Joshua Gil trabalha em nós justamente essa espera angustiante. É bom lembrar que esperar é a condição elementar para quem depende apenas de um milagre. Se de um lado a realidade se apequena em "Sanctorum", por outro o cinema se agiganta. No filme, tudo é plenamente cinematográfico. Não há início meio e fim, só há o meio, a catástrofe que se impôs pela violência desmedida dos cartéis que controlam as drogas e desgraçam espiritualmente o México e sua rica cultura ancestral. Embora "Sanctorum" se anuncia como denúncia, ele também é poesia, e muita poesia. O choro de um menino na floresta ecoa fortemente e estronda como uma premonição, já que no seu agasalho azul reluz em letras garrafais uma palavra que deveria ser extirpada de vez daquela realidade: front.

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