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O ESPELHO (1975) Direção de Andrei Tarkovski


Sinopse:

Um homem tenta compreender a sua vida, mas esbarra em nebulosas memórias. 


O espelho e suas cicatrizes


Texto de Marco Fialho


"O Espelho", quarto longa-metragem de Andrei Tarkovski, pode ser visto como um filme fundamental na conturbada relação do diretor russo com o regime stalinista, o ápice de uma crise que se estendeu por toda a carreira. Não à toa, essa é a obra em que o aspecto histórico está mais incorporado à narrativa (ou o pouco que se pode perceber dela). Sim, "O espelho" pode ser considerado o seu exercício mais árido como diretor, aquele onde sonho, memória, história e subjetividade são emaranhados de tal maneira que se confundem o tempo todo. Adentrar em uma obra de Tarkovski é mergulhar nos mistérios mais abissais do ser humano. 

O desejo de Tarkovski em "O espelho" é o de criar uma temporalidade e uma espacialidade próprias. Cada quadro, plano e sequência parecem fazer parte de um único painel pictórico, como se o filme formasse ao final um grande vitral em movimento. Há um intuito permanente de aproximação de um conceito pictórico da imagem, um esforço em se elaborar pinturas vivas, nitidamente inspiradas na retratação de naturezas mortas, não com um quê de exibicionismo, mas sim como expressividade, para reiterar a integralidade espiritual das personagens. "O espelho" relaciona-se muito com o conceito desenvolvido por alguns pintores, como Bruegel e Picasso. Há um esforço tamanho para que haja um registro semelhante a de uma "Guernica" (obra monumental de Picasso sobre a Guerra Civil Espanhola, pintada em 1937) de realizar um painel ao mesmo tempo difuso e expressivo em traduzir uma impressão sobre um acontecimento: para Picasso, o genocídio de Franco, para Tarkovski, a memória de um homem que viveu uma guerra e que busca se conectar novamente ao mundo por meio de seu passado.                 

E assim, o passado se faz presente e os objetos de cena tornam-se cruciais no enunciado tarkovskiano em "O espelho": são garrafas, ovos, frutas, vasilhas e tantos outros que formam um conjunto opaco a registrar a capacidade da memória de realizar uma reconstrução muitas vezes anacrônica e estéril, mesmo que para a personagem tudo isso impacte como algo vital. O que Tarkovski edifica é uma poética da demolição do sujeito, das amarras que o prendem à infelicidade e a incapacidade de amar, esse passado que tanto traduz o seu vazio existencial perante ao mundo. São personagens obliteradas pela vida, pela miséria das guerras e pela incomunicabilidade, são territórios corporais irredutivelmente marcados por um tempo opressor, que estende seus tentáculos implacáveis, que unifica e aprofunda as dores deixadas pela vida.

Para Tarkovski, somos acumuladores de temporalidades e espacialidades, somos formados por camadas e mais camadas que se avolumam, coabitam e volta e meia interagem entre si, pois estão todas guardados em nós. Assim funciona a memória em Tarkovski, como um diálogo permanente do nosso passado com o presente, um livre fluxo sem hierarquias. Por isso, a casa da infância torna-se um espaço tão recorrente em sua obra, um dado incorporado à temporalidade, algo que é despertado pela própria carnalidade, que está em nós, tal como o sangue, os ossos e os músculos. Tarkovski não trabalha a partir de simbolismos, a imagem da casa está em nós, não como símbolo, mas como algo intrínseco à própria vida. 


Em "O espelho" talvez seja o momento mais perceptível dentro da filmografia de Tarkovski para se observar o quanto as lembranças e vivências da infância possuem um papel de centralidade na sua concepção cinematográfica, que por um lado deixa uma fragrância doce no ar, mas que finaliza com um estranho amargor de algo que jamais voltará com o mesmo sabor, que soa como uma possibilidade ilusória de reviver o que já está morto. 

Importante observar o quanto a manifestação dessa memória obstrui a imagem do sujeito, na medida em que o reflexo visto é obliterado, quase como uma sombra, lembrando que pouco vemos o protagonista, que se apresenta muito mais pela voz em off, nunca frontal. A presença insistente da imagem da mãe e da esposa (como um duplo da mãe, inclusive pela semelhança física) e do próprio protagonista, quase sempre na infância, o que caracteriza uma ideia corriqueira em Tarkovski, de mostrar o quanto nunca deixamos de ser o que fomos no passado, que o tempo funciona em sua relatividade, como acúmulo não como progressão estanque. Talvez seja em "O espelho" o momento do qual a ideia complexa de tempo defendida por Tarkovski em "Esculpir o tempo" (seu livro teórico sobre cinema) seja mais evidente. 


Apesar de se demonstrar difusa e se consubstanciar fragmentada, a memória não é do plano do aleatório. Ela está ligada a uma concretude e Tarkovski a consolida por meio dos quatro elementos da natureza (o ar, o fogo, a água e a terra). O vento na relva; a chuva persistente (às vezes até dentro de casa); o fogo a encerrar ciclos e espaços; e a terra com sua mineralidade marcante, são manifestações que anunciam epifanias. Esses fenômenos são evocações, eles atiçam a memória, puxam seus fios de lugares inimagináveis        

Em "O espelho" o diretor russo investiga um cinema atento às texturas, na busca de traduzir por meio não só da imagem em si, mas também na sua qualidade, no que ela pode expressar no que tange ao sensorial, na relação com o espectador. Torna-se impossível tratar das personagens sem se considerar essa camada de como cada imagem é concebida por Tarkovski, em especial como ele trata o ambiente do interior de sua casa da infância, assim como o do exterior, aqui pensando no tratamento dado à natureza. Ainda referente à textura, faz-se oportuno mencionar a própria questão das cores do filme, que ora apresenta-se em P&B (na maioria das vezes os eventos históricos, mas não só esses) ora em cores. 


Essas variações de matizes muito reafirma uma ideia presente na obra de embaralhar fatos históricos com acontecimentos vindos da memória ou até mesmo de sonhos do protagonista. Outro elemento ligado à memória e ao sensível é a inserção da poesia de Arseni Tarkovski (pai de Andrei), que não está ali no filme para cumprir uma função narrativa, apenas para acentuar as sensações que o protagonista sentia ao rememorar seu passado. A poesia (assim como o marcante uso da música erudita, inclusive a de Amadeus Mozart) também sublinha a atmosfera autobiográfica de "O espelho", já que a aproximação de Andrei com a literatura e as artes em geral deviam muito ao fato do pai ser um artista e um tradutor. 

"O Espelho" não é um filme cronológico onde o espectador amarra facilmente suas pontas da história. Ele se instaura no caótico da memória e dos sonhos, e esse é o grande desafio de assisti-lo, o de fugir dos códigos que normalmente nos são impostos pela narrativa clássica. "O Espelho" não é um filme dado, é preciso realizá-lo como uma viagem de um sujeito pela sua nebulosa memória. Melhor do que entendê-lo é vivê-lo como um exercício de autodescoberta tanto do diretor (pois há muito de biográfico nele) quanto de todos nós como seres igualmente tomados pelas nossas lembranças, por fendas mentais que muitas vezes desconhecemos. Olhar no espelho não é ver o todo, apenas uma imagem que sobrou de nós mesmos, pois ela contem mais o que a nossa parca vista alcança nesse breve espaço de tempo. A temporalidade é algo que habita no campo do imensurável, é conformada por poderosas camadas justapostas, como caixas a serem ainda abertas, portanto, há uma enorme dose de mistério e encanto que habitam nesse terreno mergulhado por Tarkovski, algo relativo ao indizível. 


Se analisarmos "O Espelho" dentro da filmografia de Tarkovski, logo veremos tratar-se de uma das obras mais herméticas, onde a narrativa é estilhaçada, reduzida ao mínimo possível. Também marca uma mudança de chave estilística em sua filmografia. A proposta de "O espelho" é a de confrontar os mecanismos de memória do diretor com a do espectador. A pretensão está ancorada no universal ao fazer que o público possa refletir sobre os processos que detonam os fios que nos prendem ao passado, ou a acontecimentos já vividos. Assim, Tarkovski acreditava ser a fruição um momento emancipador, capaz de provocar uma espécie de autonomia do espectador. Tarkovski sustentava que ler um livro ou assistir a um filme era tão desafiador quanto escrevê-lo ou dirigi-lo. O desafio da interação pertencia então a todos que adentravam na experiência artística. 

Para Tarkovski, cada arte possuía conformações próprias que a definiam como tal, e assim ocorre com o teatro, a pintura, a dança, a literatura, e a música. O cinema ele via como uma arte nova e extremamente potente, mas desde que ele assumisse a sua mais genuína vocação: a de imprimir o tempo. "O espelho" pode ser considerada a obra mais ousada e profunda quanto a esse princípio tarkovskiano.           

Revisto durante a pandemia do Coronavírus, em outubro de 2021.    



Comentários

  1. Texto tão bom de ler, imagens escolhidas que fazem refletir sobre conteúdos do texto e nossas memórias, sempre, me pareceu de essência na memória afetiva universal se expressando pelo o que o autor mostra e a de que vai assistindo o filme. Imagens belas (mentais também, nesse encontre, que às vezes, pode ser numa específica obra de arte como A Menina com o Brinco de Pérola, em toda singeleza da poesia dela estar também na mulher, anos depois, registrada no gesto da mulher, integrante do filme.

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    1. Que beleza de comentário!! Fiquei emocionado com ele. Quanta sensibilidade! Ana, só tenho a agradecê-la por cada palavra digitada. Você é uma artista!

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  2. Muito grata, Marco, pelas suas palavras, e por todos is textos.
    E seguir seu blog é garantia de escolher os melhores filmes (como por exemplo, Dias Perfeitos)

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