Pornográficas são as guerras... ou... (o sexo sem parênteses)
Texto de Marco Fialho
"Em busca de Carlos Zéfiro", novo documentário de Silvio Tendler, conforme o próprio título já anuncia, tem um envolvimento pessoal surpreendente. Não é só um filme que busca algo no passado, mas que sobretudo busca também algo no passado do próprio diretor (evidente, o diretor foi leitor de Zéfiro!). Esse talvez seja um diferencial desse para outros documentários de Tendler, uma visita ao passado oculto não só dele, como de vários brasileiros, que na surdina usufruíram (literalmente) dos desenhos e histórias sacanas (os famosos catecismos de Zéfiro), escritas igualmente sob o manto do proibido (as tais das indesejáveis bolas pretas), já que Zéfiro escreveu e desenhou sempre escondido desde a infância, assim como foi comercializado da mesma maneira, na clandestinidade.
Antes do documentário começar assistimos a um depoimento do diretor em relação à proibição do filme aqui no Brasil, onde Tendler dá uma aula sobre erotismo e a perseguição que sempre envolveu a questão do prazer na história do mundo. Tendler deixa claro a proposta de mostrar tudo como Zéfiro contou, sem as censuras (as inconvenientes bolas pretas) que tanto marcaram a carreira do desenhista e escritor. A versão que assisti é a do diretor, o que indica (tomara que não!) que pode haver uma versão mais "comportada" a ser mostrada no cinema. A verdade é que o clandestino vende mais, o que não pode ser visto é sedutor, aquela tal revista que se guarda para ver na "encolha", algo bem banal e típico na hipócrita sociedade machista patriarcal brasileira. Pode-se ver, mas não pode mostrar nem dizer ao outro que viu.
Não casualmente, Tendler começa o filme por retratar essa sociedade dos anos 1950 e 1960, sedenta pela emancipação, mas que ao mesmo tempo não larga mão do conservadorismo mais empedernido. Se o Brasil se desenvolvia economicamente, nas entranhas ainda mantinha os costumes de fazer tudo "por debaixo dos panos" (e aqui o sexo não é o único a ser lembrado). Tendler divide o documentário por capítulos estilosamente sexuais, com direito as preliminares, a hora do vamos ver sexual até o capítulo "tirando a tarja preta", quando temos a revelação do homem Alcides Caminha por trás do artista Carlos Zéfiro, que creio ser a primeira vez que tanto ele quanto a família são revelados publicamente (mais um ponto para este trabalho impecável no que tange a pesquisa).
"Em busca de Carlos Zéfiro" é um presente amoroso com o qual Tendler brinda o público, um documento que tira do anonimato uma figura ímpar da nossa cultura, (que surpreendentemente já foi até capa e ilustração de um disco da Marisa Monte), expondo sua arte subversivamente erótica. Claro, que vista com os olhos de hoje, onde podemos ver filmes pornôs gratuitamente e livremente no celular, Zéfiro nada possa soar ser tão perigoso assim (o que de fato nunca deveria ser mesmo), mas essa sensação de conteúdo proibido, escondido, era o charme dessas obras e aguçava ainda mais o desejo de conhecê-las. Em boa parte do filme, Tendler mostra a obra de Zéfiro preservando o formato de revista, deixando os desenhos falarem por si mesmo, mas inclui uma curiosa e instigante narração dos diálogos que acontecem entre os personagens, narrados com graça e uma dose refinada de humor por Maitê Proença, Eduardo Tornaghi e Chico Díaz.
Que fique bem claro: falar de erotismo é sempre algo salutar e de bom tom, não o inverso disso (inclusive não cabe mais o inverso). Por o erotismo para debaixo do tapete da sala, do quarto ou leva-lo disfarçadamente para o banheiro é que deve ser visto como a nova heresia (não que isso não traga ou trouxesse uma dose de prazer extra). Proibir é que deve ser evitado, pois esse ato, historicamente, leva à hipocrisia e dela já estamos fartos, certo?
"Em busca de Carlos Zéfiro" expõe algo de fundamental e extraordinário, que é a capacidade infinita da humanidade de imaginar, de ir além. Vale lembrar que essas imagens desenhadas (pasmem, com traços rudimentares) despertavam prazeres inconfessos, levaram gerações ao orgasmo, o que mostra também o poder de algo quando o tomamos como proibido ou censurável (o famoso ver por detrás da fechadura). Mas o que dizer quando descobrimos que os vestígios dos vetos do passado não estão assim tão mortos. Qualquer ato de proibição desse filme franco, honesto, carinhoso e tesudo de Tendler será absurdo, mais condenável do que qualquer imagem erótica que possa ser exibida. Como bem disse o diretor no preâmbulo do filme: "pornográfica são as guerras". Ponto final. Nada mais a acrescentar, apenas assinar embaixo dessa sentença que tão bem sintetiza esse tema.
Assistido no link do Festival RECINE 2021, em dia 28/09.
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