Glauber e a transformação do mundo de hoje
Texto de Marco Fialho
Como Glauber Rocha veria o mundo de hoje? Como reagiria com a sua arte? Manteria a verve que tão bem o caracterizava? São perguntas que ficam no ar, nos circundando, assim que terminamos de assistir ao potente documentário "Antena da raça", dirigido por Luís Abramo e Paloma Rocha. Entender o Brasil, decifra-lo historicamente (tarefa das mais complexas até hoje) por meio das interrogações glauberianas, da luta que ele travou tanto nas artes quanto fora delas para reformar as estruturas socioeconômicas desse país continental.
A grande proeza de "Antena da raça" está em como ele consegue se estabelecer como um organismo vivo, sobretudo pela maneira como trata da relação entre passado e presente. Os petardos de Glauber desferidos no programa de TV "Abertura" que realizou entre o período de abertura política no Brasil em 1979 e 1980, se voltam contra os nossos dias, nos interrogam sobre o que fazer com esse país que não supera as suas contradições históricas. Se somam a isso os filmes que o diretor baiano tão bem utilizou como livres instrumentos para entender e discutir o país. Esse riquíssimo material de arquivo é utilizado com muita criatividade e ousadia pelos diretores de "Antena da raça".
Abramo e Paloma (filha de Glauber e Helena Ignês) montam "Antena da raça" nitidamente inspirados nas narrativas libertárias de Glauber e trabalham as temporalidades fazendo livres associações, unindo discursos pelo sentido ao invés de pela lógica cronológica, o que faz o filme expandir as suas possibilidades de análise. As ideias contestatórias de Glauber servem como farol para a reestruturação fílmica A construção de país que revertesse os entraves impostos pelo colonialismo econômico. Atores importantes na vida pregressa de Glauber (Zé Celso Martinez Correa, Caetano Veloso, José Dirceu, Helena Ignez e Luis Carlos Barreto) interagem no presente com as ideias dele, em um esforço de ler e propor ações políticas e culturais sob a luz dessa antena da raça baiana. Falar do presente aqui é falar do governo neofascista de Bolsonaro, é tentar compreender como voltamos ao modelo autoritário que Glauber tanto lutou para superar e o programa "Abertura" deixava esse esforço muito evidente.
Durante todo o Cinema Novo e para além dele, muito se cobrou dos artistas um diálogo possível com o povo. Dizia-se que os filmes transgressores falavam para uma elite cultural, já letrada, mas era inacessível para a maioria absoluta da população. No programa "Abertura", Glauber incorporou Severino, um homem simples do povo para tentar fazer essa aproximação. Entretanto, o mais interessante é ver várias ideias de Glauber ecoarem no mundo de hoje, como a voz dos pretos, a dos favelados a cobrar uma ação civilizacional do Estado em seu território, a das mulheres a exigir direitos igualitários e assim por diante. Há um traço oswaldiano em "Antena da raça", de flertar a tradição cultural com o mundo altamente mediatizado de hoje, traz uma certa utopia de acreditar que algo ainda é possível, especialmente pela inspiração moderna de Martinez Correa e Caetano Veloso (essencialmente glauberianos), de uma vontade de fazer a Terra transar (como diz brilhantemente Martinez Correa) dentro de uma lógica que junte lucidez e um estado de êxtase.
Se hoje vivemos uma atmosfera para lá de careta, assentada por um obtuso conservadorismo, pensar Glauber é pensar na desestruturação desse mundo do agro, da bíblia e da bala, que já nasceu em ruínas, embora lute ainda pelo poder da grana fácil, da roubalheira desenfreada para manter o seu poderio político. Glauber simboliza um país criativo, combatente, corajoso, apesar de intenso, conciliador, um Brasil que pode avançar, desde que reveja os traços patriarcais e escravocratas da sua formação. Glauber lançava a sua antena para o passado, presente e futuro, entendeu a importância de herdar as forças positivas do passado para começar a construir urgentemente no presente um futuro que dimensionasse o bem estar coletivo pela democracia.
"Antena da raça" se coloca para as lutas do hoje, para as urgência do aqui e agora, em prol das vozes dos excluídos e violentados por uma sociedade que ainda precisa se transformar, ainda vítima do que Glauber chamou de luta dos ricos contra os pobres. "Antena da raça" se espelha no passado e nos convida a voltar a ele para repensarmos, ou até mesmo nos inspirarmos nele, de quem acredita no poder transformador da arte para o universo. Se Glauber acreditava na redenção do Brasil, mesmo vivendo em plena ditadura, quem somos nós para duvidarmos que é possível sair desse atual atoleiro?
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