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A INFÂNCIA DE IVAN (1962) Direção Andrei Tarkovski

Sinopse:

Durante a Segunda Guerra, Ivan (Nikolai Buryaev), um menino de 12 anos, trabalha como espião no front soviético, cruzando as linhas inimigas para coletar informações dos nazistas. 

Entre o realismo e o impressionismo: a dura realidade da guerra e o idealismo do onírico em Tarkovski  

Texto de Marco Fialho

Apesar de "A infância de Ivan" (1962) ser o primeiro longa de Andrei Tarkovski e de ser uma obra de grande impacto visual e sonoro, ela apresenta características diversas em relação as 6 obras posteriores do diretor russo. Há, por exemplo, um lirismo inserido no protagonista deste filme de estreia que depois não mais será resgatado. Tarkovski irá trilhar caminhos mais nebulosos e misteriosos, para não dizer herméticos, em busca de uma linguagem própria, com uma digital muito peculiar. O lirismo posterior estará presente mais na própria abordagem do diretor. A narrativa em "A infância de Ivan" esbarra na clássica, embora o diretor tente continuamente se esquivar dela, com planos mais simbólicos e elipses temporais que vez por outra ameaçam a estabilidade narrativa.  

Essa obra crepuscular de Tarkovski pode ser considerada de formação e ainda muito amparada na tradição excepcional da escola de cinema soviética, uma das mais vigorosas do mundo, tendo a gigante Mosfilm como sustentáculo dessa indústria, que visava ensejar um cinema que ecoasse o ideal revolucionário socialista de 1917, sem esquecer o viés intervencionista stalinista do pós-guerra, com o intuito de realçar o combate firme em relação ao nazismo, contrário a inserção de qualquer traço subjetivo nas obras artísticas. 


O filme é baseado no romance "Ivan", de Vladimir Bogomolov, e foi adaptado para as telas por Tarkovski, com revisão de um representante do conselho militar soviético. A Mosfilm queria que houvesse um enfoque mais pragmático, centrado em movimentadas cenas do front. Mas Tarkovski subversivamente realizou uma obra onde os fatos foram suplantados por uma espécie de sensorialismo, onde se salienta o aspecto sonoro como fundamental na concepção fílmica do diretor, despertando na fruição do espectador uma percepção mais intuitiva e impressionista. Se o governo não conseguiu seu intento de direcionar a obra para o heroísmo soviético, Tarkovski também não obteve sucesso na empreitada de impor a sua verve autoral. O resultado foi que o filme ficou em um limbo, com uma abordagem que transita entre a realista e a impressionista.            

Esse primeiro registro analítico aqui esboçado em nada desmerece ou diminui "A infância de Ivan", apenas permite que façamos uma importante distinção desta obra em relação às outras posteriores. Dentre os filmes de Tarkovski, esse é o mais narrativo, onde o fio da história é o mais compreensível ao público, um projeto inclusive em que ele não era inicialmente o diretor. Entretanto, mesmo nesse contexto desfavorável, "A infância de Ivan" possui uma sofisticação e um acabamento irretocáveis, a começar pela fotografia com belos toques impressionistas, uma movimentação de câmera impecável, enquadramentos escolhidos com sensibilidade e um desenho de som ambíguo que abraça o filme ora com ternura ora com perturbação emocional.


Mas já há uma característica nessa obra que se tornará marcante na processo estilístico do diretor, a de imprimir uma atmosfera misteriosa, instauradora de um mundo eternamente em pecado, insidioso e adverso. Para Tarkovski, o mundo jamais foi um lugar aprazível. E se a harmonia existe em algum momento é para logo a seguir sublinhar a primazia do lado obscuro da vida tal como ela é, com suas guerras e outros conflitos humanos. Em "A infância de Ivan", o menino que vemos não é mais um menino, afinal a infância lhe foi subtraída pela guerra, após presenciar o assassinato da sua mãe pelo nazistas. Ivan torna-se compulsoriamente adulto e assume uma postura perante os fatos objetivos de sua vida que chega a impressionar. 

A vingança pode ser assinalada como uma das temáticas principais do filme, mas chamo atenção também para como Tarkovski trabalha a questão da obsessão de Ivan em praticar essa vingança. Curioso e surpreendente como o diretor recria a temporalidade do filme a partir dos sonhos de Ivan, como ele insere o passado tanto com os momentos de idílio quanto com os traumáticos. Inclusive, a vingança do menino é oriunda de um trauma do passado. O onírico em "A infância de Ivan" traz consigo um lirismo, nele está contido uma das camadas poéticas do filme. Mas não podemos simplificar, a poesia irrompe por diversos vieses, também se anuncia pela trilha musical, pelos enquadramentos e movimentos de câmera.         


Delicadamente e com esmero, Tarkovski cria um contraste expressivo entre os sonhos de Ivan e a sua realidade. Tarkovski aproveita a dualidade da belíssima fotografia em preto e branco de Vadim Yusov para engendrar ambiências específicas. O excesso de luz invade as cenas dos sonhos com a mãe, enquanto as sombras perpassam o ambiente do cotidiano inteiramente tomado pela violência da guerra. Já na sequência de abertura, o diretor edifica uma ideia cinematográfica central, formada por um paradoxo que percorrerá toda a obra: a de montar uma arquitetura fílmica onde o sonho se contrapõe imediatamente à tragédia da guerra. Essa poética instaura e encerra, ao meu ver, o cerne narrativo, a capacidade idiossincrática do indivíduo (nem que seja na esfera do inconsciente) de desejar a beleza, mesmo que os sonhos sempre terminem com um pesadelo. Uma sequência impressionante e que exemplifica essa poderosa ideia acontece quando a câmera hipnoticamente assume a subjetiva da personagem Masha, que caminha alegremente por entre as árvores, em um delírio saudosista e otimista. Assim, Tarkovski filma de uma maneira em que incrusta o ambiente onírico ao contexto extremamente adverso e violento, fazendo eles se complementarem um ao outro.

Outro elemento cinematográfico intrinsecamente crucial para a narrativa proposta por Tarkovski é a da direção de arte, competentemente assinada por Y. Chernyaev. Vale observar como Tarkovski trabalha com objetos de cena surpreendentes, como a introdução de aviões abatidos chafurdados na terra, de destroços de casas ainda sendo usadas para moradia, assim como preenche a paisagem com os corpos mortos compondo diversos planos, todos filmados em ângulos que destacam o cenário em ruínas e os fazem interagir diretamente na composição geral do quadro com os personagens. Cada quadro que fruímos no filme é impregnado de uma gama de camadas justapostas que no conjunto edificam um todo fílmico denso e poderoso sensorialmente. Essa mise-en-scène complexa de Tarkovski é tão bem urdida que pode até inicialmente passar despercebida pelo espectador, já que uma camada pode em um primeiro momento anular a percepção de outras. Ainda assim, acredito que mesmo não percebidas conscientemente, elas podem ser vividas inconscientemente durante a própria experiência de fruição do espectador. O diretor também estabelece um jogo bem interessante entre o primeiro e o segundo planos, com o uso constante da profundidade de campo, o que garante uma dualidade também na imagem e que chama a atenção para duas situações (ou ações), ou até mesmo para contrastar atitudes diferentes entre os personagens.                   


O diretor parece querer mostrar que a poesia é possível existir mesmo nas situações mais terríveis. A câmera de Tarkovski impõe um ritmo, uma cadência poética à trama, ela retira constantemente o filme de um realismo cru, assim como a música também faz o mesmo. Ambos são elementos poderosos desse extra-campo do diretor. A utilização da música não diegética reafirma a intencionalidade de uma base espiritual, que o veremos  aprofundar e ampliar em obras posteriores. Como ele disse no seu célebre livro "Esculpir o tempo": "Bem usada, a música tem a capacidade de alterar todo o tom emocional de uma sequência fílmica...". Mas se observarmos com calma, não só a música tem esse poder, os sons igualmente são fundamentais em "A infância de Ivan", basta reparar nas cenas praticamente silenciosas realizadas no rio, estrategicamente cortadas por sons de tiros esparsos, onde cada pequeno som aumenta a sensação de perigo e medo daqueles soldados que almejam não serem pegos ou atingidos pelos nazistas. Se a música do filme, a cargo de Vladimir Ovchinnikov impressiona pelo seu impressionismo, o som concebido por Elena Zelentsova prima pela sutileza de pontuar os momentos de maior dramaticidade em cada ambiente cênico específico.   

Por isso, uma chave possível para pensar "A infância de Ivan" está em como Tarkovski constrói os ambientes, investindo alto no impacto imagético das cenas, pensando aqui como ele revela essa ambiência. As locações são todas imprecisas visualmente, nunca sabemos realmente como são esses espaços. Aparentemente os internos são sempre improvisados e os externos indefinidos, onde nunca identificamos nem ao certo se há uma cidade sendo mostrada nas imagens, até porque a sensação que Tarkovski passa é que a guerra destrói não só os lugares como também a alma das pessoas. A guerra se vislumbra como um espaço em si, destruidor da identidade espacial e humana. 


Paradoxalmente, a noção de mundo ideal só existe nos sonhos de Ivan. Lá vemos uma praia linda, uma fazenda ensolarada, risos, sorrisos, voos de borboletas e outros imaginários do próprio Ivan, como no início do filme, onde a ideia de liberdade e felicidade só dura o instante fugidio do tempo do sonho. A mensagem parece ser clara: na guerra não há humanidade possível, só a morte e o medo. Só restou para o mundo a brevidade lúdica e provisória do universo onírico. Entretanto, Tarkovski não nos reserva somente um lado da moeda, esboça a vida como uma possibilidade, não só como ela é, mas também como deveria ser.

Filme revisto em DVD, no dia 08/09/2021.

Comentários

  1. Filme denso,pesado,mas suas reflexoes foram importantes.

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    1. Obrigado Ceci! Os filmes de Tarkovski são sempre difíceis, desafiadores e densos, mas com uma força cinematográfica incrível!

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