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LÚDICOS VERÕES FUGIDIOS: AS RELAÇÕES HUMANAS EM GUILLAUME BRAC


Por Marco Fialho

OBS. O presente texto não tem como objeto discutir nenhum filme específico do diretor Guillaume Brac, ou mesmo de fazer um dossiê, porém apenas lançar um raio de luz sobre o conjunto de sua obra produzida até 2020. Por isso nenhum filme dele será esmiuçado ou analisado à parte neste texto.

A plataforma Mubi agraciou recentemente o público com uma mostra com 5 filmes do aqui pouco conhecido Guillaume Brac, um diretor francês com um forte DNA estilístico, que constrói obras leves, que esbarram no documentário e sempre dedicadas aos verões franceses. Lembram as comédias contemporâneas francesas de costume, deliciosas de assistir, que remetem instantaneamente a algumas narrativas de Eric Rohmer, como Joelho de Claire, Pauline na praia, Conto da primavera, entre outros. Fundamentalmente, não espere gargalhadas ou o riso fácil, pois absolutamente não se trata disso. As obras primam por roteiros sutis, elegantes no trato dos personagens e uma mise-en-scène que equilibra a paisagem com a movimentação dos atores, tudo sempre dando a sensação de estarmos presenciando um cotidiano vivo e dinâmico, que instaura um permanente frescor na narrativa.  

Os filmes que servirão de base dessa análise são: "All hands on deck" (2020), "Treasure Island" (2018), "July tales" (2017), "Rest for the braves"(2016) e "A world without women" (2011). Os filmes de Brac apesar de narrativamente fluentes, possuem temas relevantes, como o da relação interraciais na França, que implica entre outros aspectos, no racismo, na dificuldades econômicas e nas diferenças entre as classes. Porém, o que mais chama a atenção são as reflexões em torno das relações humanas em seu melhor momento, o tempo livre das férias de verão, ideal para o surgimento de flertes, amores casuais e as diferenças no viver contemporâneo. 


A obra de Guillaume Brac mais do que monotemática é uno-situacional, pois gira sempre em torno de um momento de veraneio dos personagens. Mas que fique claro que não se trata apenas do espaço em si ou de seu determinismo, mas sim das relações humanas e sociais que se estabelecem a partir desses ambientes. Portanto, há uma vertente antropológica e sociológica nessa ideia de escolher ambientes de lazer coletivo e interativo como espaços de convivência (que nem sempre são harmoniosas). Uma primeira questão que gostaria de levantar está na maneira como o diretor habilmente conduz a relação de trabalho dentro do veraneio. Sim, porque para que a diversão de alguns aconteça é necessário o trabalho de outros. Brac explora com  maestria os micropoderes de trabalhadores que controlam acessos e diversas variantes desse ambiente de diversão. 

Há uma visível aproximação de Guillaume Brac da narrativa documental. Não só realizou "Treasure Island" e "Rest for the braves", dois documentários, como também trouxe estratégicas documentais para as ficções que filmou. Creio que podemos dizer que em muitos momentos ele explode as fronteiras entre o documentário e ficção, apostando em um hibridismo que induz os espectadores a esquecer se a abordagem cinematográfica é documental ou ficcional. O que importa é que há uma constante sensação de fluência que nos aproxima das personagens. De repente parece que estamos ali vivendo aquela férias ou feriado e essa ideia é o que mais nos faz cativo do cinema de Brac.     


Um das ideias mais interessantes contidas nos filmes de verão de Brac é de como o comportamento humano contemporâneo se revela nessas situações de sazonalidade. O sol parece permitir atitudes mais ousadas e aguça um sentido de viver com mais intensidade, tal como os foliões no Carnaval a desabrocharem suas fantasias mais recônditas. A busca hedonista torna-se o comportamento momentâneo, como se os corpos precisassem dessa permissão temporária para viver experiências de prazeres fugazes, epidémicos. 

Interessante também como Brac mesmo não adotando uma postura abertamente crítica, sugere a existência de um maior assédio masculino nessas situações de veraneio, diga-se, bem mais intenso do que normalmente se vê, assumindo mesmo um ar de predador viril em busca da caça, da prenda sexual. Nota-se que aqui estamos discutindo filmes com menos de dez anos de realização (alguns com menos de três anos de conclusão), o que torna essa discussão mais séria e oportuna, já que não cabe mais naturalizar ou tentar contextualizar tais atitudes severamente eivadas pelo machismo, nesse caso aqui chegando as raias do brutal, quando a regra básica do "não é não" passa batido. A falta de uma crítica explícita talvez aconteça porque narrativamente Brac passa sempre essa ideia da vida fluindo, onde as ações falem mais do que discursos e nesse ponto as atitudes das personagens mulheres sejam sempre a de se esquivar das impertinências machistas, afinal a própria vida se encarrega de deixar os assediadores a ver navio e lembrando que a existência do verão apenas exacerba o comportamento dos indivíduos, jamais o cria.      


Genericamente, o que os verões de Brac desenham para a nossa apreciação são paisagens representativas sobre a vida e as relações amorosas e sexuais. O quanto a vida passa na sua efemeridade, como um sopro, e quando percebemos o próximo verão já se aproximou para anunciar que em breve também se esvai. Talvez esse seja o ardil que Brac tanto tenta capturar, o de aproveitarmos a vida e os prazeres fugidios que ela apresenta. Se há recompensas, Brac deixa no ar um tempero de melancolia para acompanhar as cores que só os verões são capazes de nos brindar.      

Filme disponíveis na plataforma Mubi e vistos no inverno carioca de 2021.    

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