Por Marco Fialho
"É visível que ele sonha com um mundo que seria isento de sentidos" Roland Barthes
"Desterro", novo filme de Maria Clara Escobar (Meus dias com ele), estabelece-se por uma atmosfera tomada por indagações filosóficas. Talvez seja uma obra que antes de ser compreendida deva ser vivida. É estranho dizer isso de um filme, pois de certo ali a vida exposta é uma mera projeção. Creio que a proposta da diretora seja a de criar no espectador um sentimento de empatia, uma empatia gerada pela vivência de um pesadelo. Como analisar "Desterro" sem pensar, em especial, no Brasil pós-2018, mesmo que diageticamente não haja no filme uma referência temporal sequer? Esse é um dos fascínios que as obras de arte nos proporcionam, a de transpor uma realidade para a esfera dos sentidos.
A história parte de uma situação onde uma mulher está insatisfeita ou se sentindo aprisionada em um casamento (casamento aqui entendido como uma relação em que marido e filho configuram um mundo de obrigações). Mas a prisão aqui vai mais além, ela está no próprio ato de viver e o viver como um ato entremeado de compromissos. "Desterro" não vem para explicar o que acontece ou como é a vida da personagem Laura (Carla Kinzo em uma atuação econômica e precisa). O desterro é de todos, mas quem decide vivê-lo na integralidade é Laura, ela o escancara e o encara de frente. Desde a primeira cena o rosto de Laura emana sinais de insatisfação, estampa um descompasso com o mundo.
Os próprios três capítulos propostos por Maria Clara Escobar anunciam que os trilhos estão desalinhados. "Desterro" não se alcança tão somente pela exterioridade, é um filme sobre o sentir o mundo, de como estar nele, de poder encarar o mundo a partir do risco, do imponderável, como o de dançar efusivamente com um estranho. A câmera do filme oscila entre cenas observacionais e fixas com outras mais insinuantes que ajudam a construir uma desejada imprecisão diante do ambiente narrativo. A fotografia igualmente trabalha a partir das diferenças, há cenas mais cruas e outras em que a estética neon prevalece. A própria narrativa também é constantemente abalada por depoimentos frontais de mulheres (Barbara Colen, Maria José Novais de Oliveira e Isabel Zuaa), a narrar histórias de suas vidas, que privilegiam o olhar feminino sobre o mundo, lhes garantindo uma voz. Laura parece guardar no convívio familiar sua voz, a interiorização dos sentimentos sobressai, como se falar nesse ambiente não fosse efetivamente ecoar.
Filha de um grande professor e filósofo, Maria Clara Escobar se esparrama no existencialismo, ao abastecer os personagens de uma riqueza existencial plena, mundana, sem distinguir exterioridade e interioridade, mas assumindo uma integralidade, sem julgamentos e lembrando a todos que não podemos ser seres pré-determinados e alienados. Por isso, torna-se um equívoco tentar entender "Desterro" em uma lógica calcada apenas na história em si e seus encadeamentos, pois os encantos dessa obra reside nas sensações que desperta e provoca. Vale lembrar ainda o próprio questionamento acerca da vida e da morte, o que seria uma e outra e o que de uma contem a outra. Escobar deixa sempre uma dica de que as sensações construídas pelos personagens vão para além deles, basta pensar nas participações aparentemente fugidias das personagens de Grace Passô e Sara Antunes no metrô; de Rômulo Braga no ônibus; na mulher com um filho também no ônibus e por aí vai. Laura está no centro, mas nessa perspectiva, todos são protagonistas, já que todos estão presos pelos mesmos grilhões. Todos vivem uma rotina regida pelo automatismo.
O sentimentos que impregnam "Desterro" são o do desemparo e o de não-pertencimento. Quando não nos sentimos parte de algo precisamos de uma utopia, isto é, criar um lugar imaginário e lúdico para se viver, mas a realidade é que ela não existe mais, o que restou foi a normalizar uma vida social opressiva e aprisionante. Ao entrar no ônibus para a Argentina, Laura sai do roteiro que lhe foi imposto pela vida social. Não creio ser a expressão de sua libertação, entretanto representa um ato desesperado e tardio de morrer livre, um soco no estômago na vida cômoda que nos é imposta desde que nascemos. Mais do que oferecer um final, Escobar nos oferece uma imagem simbólica, que pela força expressiva e sintética, muito me remeteu ao cinema de Andrei Tarkovski. O fogo, a casa e o casal. Uma imagem simples e poderosa, uma imagem nitidamente fermentada na cabeça da diretora, tal como gostava de fazer o mestre russo.
Em "Desterro", ser estrangeiro não é mais uma condição nacional, e sim existencial. Estar desterrado pode ser uma questão física, embora aqui Escobar trabalhe com uma ideia ampliada de desterro. Não importa estar na Argentina ou no Brasil, o ser mulher trará as obrigações de ser esposa, mãe, filha e trabalhadora. Esse "sentido" da vida assentado nas obrigações é que oprime e manifesta na vida prática uma falta de sentido. "Desterro" não pretende desfazer esses nós, apenas quer mostrar como é difícil vivê-los. Que bom que o cinema possa realizar obras que impactam sobre esses sentimentos.
Festival do Rio - Première Brasil 2020, em 12/08/2021.
É um filme que quanto mais pensamos sobre ele, mais gostamos das camadas de reflexão . O ônibus é locus desses discursos femininos potentes, com especial destaque para Zuaa e Bárbara Colen.
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