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DESTERRO (2020) Direção Maria Clara Escobar

Por Marco Fialho

"É visível que ele sonha com um mundo que seria isento de sentidos" Roland Barthes 

"Desterro", novo filme de Maria Clara Escobar (Meus dias com ele), estabelece-se por uma atmosfera tomada por indagações filosóficas. Talvez seja uma obra que antes de ser compreendida deva ser vivida. É estranho dizer isso de um filme, pois de certo ali a vida exposta é uma mera projeção. Creio que a proposta da diretora seja a de criar no espectador um sentimento de empatia, uma empatia gerada pela vivência de um pesadelo. Como analisar "Desterro" sem pensar, em especial, no Brasil pós-2018, mesmo que diageticamente não haja no filme uma referência temporal sequer? Esse é um dos fascínios que as obras de arte nos proporcionam, a de transpor uma realidade para a esfera dos sentidos. 

A história parte de uma situação onde uma mulher está insatisfeita ou se sentindo aprisionada em um casamento (casamento aqui entendido como uma relação em que marido e filho configuram um mundo de obrigações). Mas a prisão aqui vai mais além, ela está no próprio ato de viver e o viver como um ato entremeado de compromissos. "Desterro" não vem para explicar o que acontece ou como é a vida da personagem Laura (Carla Kinzo em uma atuação econômica e precisa). O desterro é de todos, mas quem decide vivê-lo na integralidade é Laura, ela o escancara e o encara de frente. Desde a primeira cena o rosto de Laura emana sinais de insatisfação, estampa um descompasso com o mundo. 

Os próprios três capítulos propostos por Maria Clara Escobar anunciam que os trilhos estão desalinhados. "Desterro" não se alcança tão somente pela exterioridade, é um filme sobre o sentir o mundo, de como estar nele, de poder encarar o mundo a partir do risco, do imponderável, como o de dançar efusivamente com um estranho. A câmera do filme oscila entre cenas observacionais e fixas com outras mais insinuantes que ajudam a construir uma desejada imprecisão diante do ambiente narrativo. A fotografia igualmente trabalha a partir das diferenças, há cenas mais cruas e outras em que a estética neon prevalece. A própria narrativa também é constantemente abalada por depoimentos frontais de mulheres (Barbara Colen, Maria José Novais de Oliveira e Isabel Zuaa), a narrar histórias de suas vidas, que privilegiam o olhar feminino sobre o mundo, lhes garantindo uma voz. Laura parece guardar no convívio familiar sua voz, a interiorização dos sentimentos sobressai, como se falar nesse ambiente não fosse efetivamente ecoar. 

Filha de um grande professor e filósofo, Maria Clara Escobar se esparrama no existencialismo, ao abastecer os personagens de uma riqueza existencial plena, mundana, sem distinguir exterioridade e interioridade, mas assumindo uma integralidade, sem julgamentos e lembrando a todos que não podemos ser seres pré-determinados e alienados. Por isso, torna-se um equívoco tentar entender "Desterro" em uma lógica calcada apenas na história em si e seus encadeamentos, pois os encantos dessa obra reside nas sensações que desperta e provoca. Vale lembrar ainda o próprio questionamento acerca da vida e da morte, o que seria uma e outra e o que de uma contem a outra. Escobar deixa sempre uma dica de que as sensações construídas pelos personagens vão para além deles, basta pensar nas participações aparentemente fugidias das personagens de Grace Passô e Sara Antunes no metrô; de Rômulo Braga no ônibus; na mulher com um filho também no ônibus e por aí vai. Laura está no centro, mas nessa perspectiva, todos são protagonistas, já que todos estão presos pelos mesmos grilhões. Todos vivem uma rotina regida pelo automatismo.

O sentimentos que impregnam "Desterro" são o do desemparo e o de não-pertencimento. Quando não nos sentimos parte de algo precisamos de uma utopia, isto é, criar um lugar imaginário e lúdico para se viver, mas a realidade é que ela não existe mais, o que restou foi a normalizar uma vida social opressiva e aprisionante. Ao entrar no ônibus para a Argentina, Laura sai do roteiro que lhe foi imposto pela vida social. Não creio ser a expressão de sua libertação, entretanto representa um ato desesperado e tardio de morrer livre, um soco no estômago na vida cômoda que nos é imposta desde que nascemos. Mais do que oferecer um final, Escobar nos oferece uma imagem simbólica, que pela força expressiva e sintética, muito me remeteu ao cinema de Andrei Tarkovski. O fogo, a casa e o casal. Uma imagem simples e poderosa, uma imagem nitidamente fermentada na cabeça da diretora, tal como gostava de fazer o mestre russo.           

Em "Desterro", ser estrangeiro não é mais uma condição nacional, e sim existencial. Estar desterrado pode ser uma questão física, embora aqui Escobar trabalhe com uma ideia ampliada de desterro. Não importa estar na Argentina ou no Brasil, o ser mulher trará as obrigações de ser esposa, mãe, filha e trabalhadora. Esse "sentido" da vida assentado nas obrigações é que oprime e manifesta na vida prática uma falta de sentido. "Desterro" não pretende desfazer esses nós, apenas quer mostrar como é difícil vivê-los. Que bom que o cinema possa realizar obras que impactam sobre esses sentimentos.  

 Festival do Rio - Première Brasil 2020, em 12/08/2021.        

                       

Comentários

  1. É um filme que quanto mais pensamos sobre ele, mais gostamos das camadas de reflexão . O ônibus é locus desses discursos femininos potentes, com especial destaque para Zuaa e Bárbara Colen.

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