UMA MISCELÂNEA PULSANTE
Por Marco Fialho
"...e a terra entrou em transe, no sertão de Ipanema..." (extraído da canção "Cinema Novo' de Caetano e Gilberto Gil)
Em 29 de agosto de 1966, os The Beatles anunciaram que não fariam mais turnês e que se dedicariam, a partir de então, a fazer somente álbuns de estúdio. Se fomos assim comparar, Cinema Novo de Eryk Rocha pode ser visto como um filme de estúdio. Eryk não filmou uma só imagem para a realização do seu filme, mas em contrapartida fez uma pesquisa admirável. Eryk utiliza-se de 130 trechos de filmes para compor a obra, mas o faz mesclando com entrevistas e reportagens de TV feitas no Brasil e no exterior, e por incrível que possa parecer essa mistura deu certo, e a prova disso foi o filme ser agraciado com o Olho de Ouro, prêmio máximo em Cannes dado para documentários.
O filme Cinema Novo foi construído a partir de diversas camadas. São colagens de imagens, trechos de filmes, combinação sonora, depoimentos dos cineastas, enfim, uma miscelânea de materiais pulsantes, orquestrados para que os percebamos vivos e potentes. Eryk Rocha, em síntese, realiza um filme de montagem. Ele próprio já disse certa vez que se vê como montador. Observando sua filmografia isso fica bem evidente, pois ele é um diretor que pensa como montador, ou melhor, que já possui uma ideia de montagem na forma de pensar o cinema. Inclusive deve ser mencionada e destacada a grande parceria nesse trabalho do montador Renato Valone, já que a montagem constitui um elemento que salta aos olhos no filme.
Chama a atenção como Eryk consegue reinventar e resignificar os materiais que manipula e combina, lhes conferindo uma poética surpreendente. Logo na primeira sequência, ele dá o tom, mostrando vários personagens em movimento, sempre correndo. Assim, constrói-se uma síntese do objeto principal do filme: o movimento cinema-novista. Eryk salienta os personagens sempre em deslocamento, como se buscassem um país inalcançável, de miseráveis desesperados, como o caso de Manuel e Rosa de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" em busca do mar inatingível, enfim, de um país repleto de sede por mudanças estruturais. Tal como o movimento do Cinema Novo, o filme Cinema Novo também busca entender esse país continental rico, contraditório, mas imerso na pobreza, tal como apontou coerentemente Glauber Rocha em seu Manifesto da Fome datada de 1965.
O filme de Erik expõe principalmente as imagens feitas nos anos 1960, mas em sua viagem temporal parece também nos lançar e indagar sobre as permanências no hoje, amarra passado e presente de forma vigorosa, mostra com veemência o movimento que denunciou as disparidades socioeconômicas do país, suas agruras e demônios históricos. E fica a sensação de que a mesma pergunta de antes ainda continua nos rondando e ecoando: superamos os abismos que esses cineastas gritaram com tanta indignação no passado?
O que sentimos é que no filme transpira uma profunda afetividade em relação ao tema, afinal, Eryk é filho de Glauber Rocha, cineasta-ícone do Cinema Novo, o cérebro e coração do movimento. Seguindo a tradição dos filmes do Cinema Novo, que apesar da baixa bilheteria no Brasil, sempre foram prestigiados nos festivais internacionais, a obra de Eryk Rocha arrebatou no Festival de Cannes de 2016 o prêmio L'Oeil D'Or (dado a documentários), além de prêmios importantes em outros países como Espanha, Chile e Cuba.
Cinematograficamente, o desejo cinema-novista era o de tirar o cinema dos estúdios e colocá-lo nas ruas, de flertar com a vida, combatendo o artificialismo dos cenários, uma clara inspiração vinda do neorrealismo italiano do pós-guerra. Outra inspiração foi a da nouvelle vague francesa, que apontou caminhos decisivos para a desconstrução da narrativa clássica. Assim, o Cinema Novo bebeu fundamentalmente dessas duas fontes, adaptando ao nosso contexto essas inovações europeias. Como dizia Glauber, a nossa fome impregnava não só os temas, mas também a forma de se filmar que deveriam ser incorporadas esteticamente à produção dos filmes.
Mas assim como os filmes do movimento, as opções narrativas de Eryk Rocha também não são convencionais, não são contadas, como em um documentário clássico, por uma voz over que tudo explica e esclarece sobre o tema. Não existe também uma ordem cronológica a ser seguida pelo espectador, mas existem blocos temáticos, como o do golpe civil-militar de 1964, que foi um divisor de águas para o Brasil e para o Cinema Novo. Outro bloco fundamental é o do AI-5, que causou um esfacelamento no movimento. Fora isso, vários filmes e cineastas situados fora do movimento são incluídos, pois Eryk privilegiou muito mais afinidades estéticas do que uma delimitação histórica rígida regida por datas estanques. O filme também busca resgatar uma genealogia nacional, recompondo o movimento com alguns pioneiros do nosso cinema, como Mario Peixoto e Humberto Mauro.
Dessa forma, não é a proposta de Eryk reconstruir o movimento cinema-novista pela visão dos seus atores vivos, de estudiosos ou críticos de cinema. A opção de Eryk é usar os próprios filmes e a própria voz dos cineastas como filões narrativos, mas todos eles lá, no calor da hora. Não há no filme os nossos dias, o presente apenas somos nós espectadores, com o desafio de dar conta da avalanche de imagens e sons que nos chegam. O grande valor do filme de Eryk Rocha é o de resgatar o Cinema Novo para o Brasil não como um registro de um passado, mas como ente pulsante, uma energia vital para a nossa cinematografia. Ao assistirmos Cinema Novo descobrimos que muito do que somos hoje, cinematograficamente falando, dialoga com esse movimento fascinante. Glauber, Leon, Joaquim Pedro e companhia definitivamente estão vivos. Essa é a proeza realizada por Erik Rocha.
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