Por Marco Fialho
"... a verdade só se revela quando você é forçado a perder o controle..."
Astrid, protagonista do filme "Eu estava em casa, mas..."
A cada novo trabalho a alemã Angela Schanelec vem se consolidando como um dos nomes mais interessantes das gerações de cineastas que se surgiram após a queda do muro de Berlim (1989). Dessas gerações podem ser lembrados Wolfgang Becker, Christian Petzold, Maren Aden, Florian Henckel von Donnersmarck, Olivier Hirschbiegel,e Fatih Akin, como exemplos de diretores que vem se destacando em festivais e circuitos comerciais. Talvez o ponto mais em comum desses cineastas seja o de expressar nas telas as fraturas e as contradições que afloraram da reintegração territorial alemã, que em muitos dos casos provocou uma forte cisão emocional, assim como diversos traumas sociais. Cabe ainda registrar a triste realidade do mercado exibidor brasileiro, onde pouquíssimos filmes alemães chegam às telas brasileiras no circuito comercial. Os maiores esforços podem ser endereçados às instituições culturais, que na maioria das vezes em parceria com o Instituto Göethe, realizam mostras dedicadas ao cinema alemão contemporâneo.
Agora temos o privilégio de assistir a mais um filme de Angela Schanelec graças a Distribuidora Zeta Filmes, que já havia trazido para o nosso circuito o filme anterior da diretora, o também enigmático "O caminho dos sonhos" (2016), e agora nos brinda com "Eu estava em casa, mas..." (2019), obra que no último Festival de Berlim foi premiada com o Urso de Prata de melhor direção. O que mais chama atenção nesse filme é a abordagem proposta por Angela, que deixa sempre, como de habitual em seus trabalhos, uma grande margem para a intervenção do público na interpretação de suas obras. Nada é entregue de uma vez e apesar de paradoxalmente Angela também discutir a dificuldade de intercomunicação humana, há um distanciamento compatível da direção no trato do tema e no registro fílmico. A câmera permanece fixa quase sempre, como se apenas observasse o estranho mundo que Angela nos oferece. Em "Eu estava em casa, mas..." nada é dado a priori, as imagens sempre solicitam um algo de nós, seja para juntá-las ou para tentar dar-lhes algum sentido.
Está dentro do universo ficcional de Angela trabalhar com personagens que precisam lidar com situações irrevogáveis, como a morte de um marido ou de um pai. O mergulho de Angela nessa situação-limite mescla frieza e agudeza. Frieza na direção de atores, onde as emoções estão marcadamente represadas, e também na câmera sempre distante a registrar sem embarcar nas emoções dos personagens. Agudeza por como as relações humanas se estabelecem entre si. Há uma crueldade e uma ausência de asceticismo, que nos lança em um realismo aparentemente cruel, mas que se revela ao longo do filme mais humanizante e esperançoso, talhado na postura recalcitrante dos filhos na busca de um conforto amoroso, vide o plano final dos irmãos no rio.
Entre a mãe e os filhos há uma visível barreira sentimental, que beira o intransponível. A narrativa de Angela Schanelec estrutura individualmente os comportamentos dos personagens, pois cada dor é sentida diferentemente de pessoa para pessoa e isso está incorporado corporeamente ao filme, não sendo assim possível ao espectador acessar emoções particulares dos personagens. O tratamento de Angela é fenomenológico ao potencializar as ações dos personagens tão somente às próprias subjetividades. Se estabelece em "Eu estava em casa, mas..." um paradoxo interessante: do ponto de vista fílmico estamos diante de um objetivismo latente, enquanto na exploração dos personagens há um severo subjetivismo. Esse choque estrutura a dramaturgia complexa desta obra.
Existe uma camada interessante em "Eu estava em casa, mas..." em relação à representação da morte nas artes em contraposição de como a encaramos na nossa vida cotidiana, em especial depois de uma perda familiar. Talvez seja essa a camada mais profunda que o filme nos proporciona, pois ela sempre de alguma forma retorna à história. Angela trabalha a morte tanto objetivamente quanto subjetivamente. Logo na primeira sequência vemos um cachorro caçando, matando e se alimentando selvagemente de um coelho, isto é, a morte crua tal como se apresenta no mundo animal. Mas ao longo do filme assistimos Astrid (Maren Eggert), a mãe, sofrendo cotidianamente com o vazio e a dor ocasionados pela morte do marido, constituindo ela uma camada mais subjetiva e profunda do filme de Angela Schanelec, embora paradoxalmente nunca nos permita realmente acessar essa subjetividade, ela é sempre relativa.
Mas não podemos deixar de citar a representação da morte vinda pela ótica artística, ainda mais que essa camada vem a dialogar fortemente com as outras camadas, estabelecendo uma espécie de confronto, afinal para Angela tudo leva a crer que as representações estão sempre aquém da dor sentida pela ausência que a morte traz. E há pelo menos dois momentos expressivos no filme. Quase no final do filme, há uma cena em que vemos uma encenação improvisada de uma turma de estudantes da peça "Hamlet" e uma outra cena, ainda mais expressiva, do encontro casual de Astrid com um diretor de cinema na rua, na qual eles conversam sobre um filme que ele fez. Esse plano-sequência de 10 minutos funciona como uma síntese do filme, em um dos poucos momentos em que a câmera de Angela Schanelec se movimenta, onde a objetividade fílmica se encontra com a subjetividade da protagonista Astrid. O diálogo que nem sempre é central no jogo narrativo da diretora, aqui torna-se algo vivo, vibrante e revelador, por isso mesmo reproduzo uma parte do que Astrid diz ao diretor suas impressões sobre o filme dele:
"Então a dançarina está só fingindo, é tudo fingimento, enquanto a mulher doente não pode fingir nada. Nossa, nesse encontro entre elas a gente vê o quão raso e vazio é atuar. Quando a dançarina toca a mulher e sorri, não são duas pessoas se encontrando, é a falsidade encontrando a verdade, o falso sorri para o verdadeiro, então o encontro não significa nada porque o falso é sempre mais forte e um momento falso arruína com tudo. É como a comida, você tem um excelente prato, mas um tempero errado, ou a mais, e a coisa toda se acaba."
Essencialmente para Angela Schanelec a dor, a morte, a ausência são irrepresentáveis, e eles não podem ser representados porque somente podem ser vividos. Essas dores estão bem sintetizadas numa das cenas mais impactantes do filme, quando os filhos não conseguem abraçar a mãe depois de algumas tentativas.
Em "Eu estava em casa, mas..." Angela Schanelec aborda questões centrais para o cinema, como a da natureza da representação tanto na arte quanto na vida. O interessante são os paradoxos que o filme faz emergir, já que ao questionar representações da vida pela arte a diretora se utiliza delas para realizar sua própria obra. Os paradoxos utilizados no filme foram fundamentais para fazer aflorar as contradições das situações filmadas, inclusive a própria filmagem em si. Mas é sempre louvável quando um filme se propõe a refletir o processo do fazer artístico, afinal essas são as delícias de se pensar o cinema.
Cotação: 4/5
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