A força da imagem de Santiago
Por Marco Fialho
"Santiago das Américas ou o olho do terceiro mundo": se o título é grande, o filme também o é. O novo trabalho do incansável Silvio Tendler, nosso maior documentarista político, celebra o centenário de Santiago Álvarez, o documentarista cubano que melhor identificou e retratou a revolução cubana e mundial. É um trabalho de fôlego, mesmo que grande parte do material filmado durante vários anos foi perdido em uma crise energética em Cuba, que danificou o acervo guardado no ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica). Verdadeiramente uma pena. Porém, o mais incrível é que Tendler não deixou que isso o impedisse de realizar esse belo filme, para mim um dos mais significativos de sua longa e profícua carreira como documentarista.
O filme se enquadra bem como um documentário de personagem, só que ao invés de se deter apenas na tradicional seleção e organização temporal da vida de Santiago, Silvio Tendler vai além e constrói um poderoso registro de ideias. Apesar de haver os fatos e as datas, o mais importante está na quantidade de ideias que flutuam em cada depoimento feito. A sensação que temos é que estamos revivendo um álbum vivo, recheado de memórias de sonhos e utopias terceiro-mundistas, uma epopeia de quando o mundo parecia que era viável, de que os revolucionários de todo o mundo concretizariam a ideia incendiária original de Marx: "trabalhadores de todo o mundo, uni-vos".
O maior desafio de Tendler em "Santiago das Américas..." é fazer o público se interessar pelo personagem, já que dele vemos mais imagens do que realmente depoimentos e muitos áudios em off. Santiago durante muito tempo esteve à frente do cinejornal oficial do governo revolucionário cubano e se tornou um dos militantes mais fundamentais para o regime de Castro, ao realizar um cinejornal a cada semana, em um ritmo de produção surpreendente. O filme consegue reconstruir Santiago por meio de depoimentos de natureza variada, do próprio Santiago (em áudios), de amigos, companheiros de trabalho, de revolução, de cineastas (como o brasileiro Orlando Senna) até registros de época, todos pontuados pela narração do ator Chico Diaz, que com sua voz serena ajuda a nos situar nos contextos diversos retratados.
Muitos contestavam Santiago Álvarez por só fazer documentários. Esses críticos diziam que ele fazia documentários porque não sabia fazer ficções. Assim, Santiago faz um curta ficcional, "O sonho do Pongo" (1970), e o filme foi premiado no Festival de San Sebástian. Apesar de não ser preciso, Santiago provava para todos que fazer documentário era uma opção e não uma falta de talento para outras maneiras de construir histórias, no caso a ficcional. A escolha dele pelo documentário era sobretudo por convicção política, de que esse era um caminho para se comunicar mensagens que acreditava para o mundo.
O trabalho de Santiago Álvarez visto nesse conjunto impressiona. Seus documentários mantinham a chama revolucionária acessa não só em Cuba como em outros países. Suas coberturas de eventos e lutas pela América Latina (Uruguai), África (Moçambique) e Ásia (Vietnam) recompõem o universo das lutas planetária pela revolução socialista. Diante de tanto material coletado, sobressai a montagem de Ricardo Moreira e Lilian Souza Diniz, que habilmente costuram essa profusão de imagens. Há algumas sobras das filmagens danificadas que são reaproveitadas matreiramente por Tendler, fazendo-as soar como um efeito.
Por meio de depoimentos, Tendler esmiúça o estilo cinematográfico de Santiago, que parte do documentário clássico para desconstruí-lo por dentro, caso dos letreiros que ele utilizava graficamente em seus filmes, não só como mensagem como também imagem (estilo que Tendler sabidamente incorpora no seu filme como homenagem). Deve-se salientar ainda a própria influência que o cinema de Santiago tem sobre o de Tendler, assim o filme funciona ainda como uma homenagem não só temática, mas na forma fílmica. Santiago uniu militância política com cinema, era um artista criador e um homem consciente do papel social que exercia. Fazia do cinema um instrumento de comunicação poderoso em prol da revolução socialista.
Um dos grandes fascínios de "Santiago das Américas..." é o resgate emocional do universo da esquerda mundial. A cada cena o documentário de Tendler vai crescendo, ganhando em organização e potência na mensagem. Ao final temos um inventário imagético não das utopias, mas do quanto se lutou para se construir um mundo que fosse alternativo ao opressivo imperialismo no qual ainda estamos submetidos. Se muito do que vemos desmoronou, há em "Santiago das Américas..." um quê de resistência, em especial se pensarmos na situação abismal que vivemos em 2021. Nesse contexto, reviver Santiago Álvarez é mais do que sonho, é esperança.
Visto no dia 17/05/2021, na plataforma do Estação Virtual.
Cotação: 4/5
Obrigada Marco por tão belo comentário..reacendeu.me uma saudade imensa dessa ilha
ResponderExcluirde relembrar estes fatos,..um estimulo à esperança