Pular para o conteúdo principal

NOMADLAND - Direção de Chloé Zhao


Sinopse:
Em Nomadland, após o colapso econômico de uma cidade na zona rural de Nevada, nos Estados Unidos, Fern (Frances McDormand), uma mulher de 60 anos, entra em sua van e parte para a estrada, vivendo uma vida fora da sociedade convencional como uma nômade moderna. 

Nomadland e o capitalismo tartaruga

Por Marco Fialho

Começo a minha análise do filme "Nomadland" pelo próprio título e seu possível significado. Nele há uma alusão ao nomadismo, porém mais do que isso faz-se uma referência a um lugar, um lugar ao que tudo indica se define por uma ideia de nomadismo. É preciso lembrar que filme da diretora Chloé Zhao foi inspirado no livro de não-ficção da jornalista Jessica Bruder, que analisa a vida de pessoas com mais de 60 anos que buscaram o nomadismo como forma de sobrevivência nos Estados Unidos do Século 21. Longe de ser uma apologia a uma busca pela felicidade, "Nomadland" constrói-se numa atmosfera melancólica. 

O historiador Marc Ferro dizia que o cinema é a arte do presente, mesmo quando um diretor falava de épocas históricas pregressas. Assim, Wajda quando filmou "Danton", não falava da revolução francesa mas sim da Polônia do seu presente. O cinema então para o historiador francês seria capaz de apresentar uma outra versão da história, diversa da oficial, que ele definiu como contra-análise da história. Antes de tudo, essa visão é possuidora de um viés reparador, ao permitir uma visão independente a dos poderes constituídos. É nessa categoria que enquadro "Nomadland", como uma obra que retira da invisibilidade histórica os cidadãos com mais de sessenta anos, que no mundo de hoje, estão relegados ao apagamento. Nesse novo mundo do trabalho sob o domínio econômico absoluto do capitalismo, eles não estão aposentados e como estão velhos para o trabalho, viram mão-de-obra barata e ocasional. O filme aponta para um triste mundo sem aposentadoria. Esse é o grande tema retratado por "Nomadland", o do abandono institucional do Estado perante o indivíduo. Os dois trabalhos anteriores de Chloé Zhao também tratavam do abandono, que é o grande tema dessa diretora nova e promissora.

A abordagem de Chloé em "Nomadland" atualiza os famosos filmes de estrada (os chamados road movies) ao inserir um elemento melancólico na abordagem. Se antes os filmes de estrada eram por essência libertários, aqui ele fala de necessidade e sobrevivência. Longe de ser um filme com um ritmo acelerado, com carros e motos sendo embalados por um rock n'roll ou um blues, o que dá o tom em todas as cenas é o clima contemplativo. 

A presença contida e humana de Fern (Frances McDormand) dita a narrativa, consegue com que "Nomadland" não perca a sua origem jornalística, de ser um filme derivado de vivências reais. Por isso, em "Nomadland" ressoa a todo o momento um quê de documentário, onde a câmera está ali registrando histórias de nômades. Aqui a sociedade é também personagem. Daí a preocupação de Zhao em misturar aos atores profissionais alguns personagens reais, que vivem mesmo como nômades, como é o caso de Bob Wells, responsável por fazer um acampamento para acolhimento dos nômades. Mas muitos outros nômades, em especial de seu acampamento, também aparecem como personagens. Vale ressaltar que o trabalho de McDormand é fundamental para o sucesso do filme. Sua atuação não destoa do elenco de não-atores, dado primordial para que tudo soe como crível, pois há uma busca por um equilíbrio no tom dela que é preciso na construção da personagem Fern.   

Uma pergunta que fica é que América é essa a de hoje, de como os sonhos foram se esvaindo na nação mais próspera do Século 20. A que tudo indica o Século 21 marcará o início da derrocada, da falência de um império que agora desampara os filhos que outrora eram o símbolo do bem viver, a terra dos sonhos. A pauperização é notória, com idosos de oitenta anos se esfolando como temporários em empresas monstruosas como a Amazon. Diante desse quadro caótico demonstrado pelo filme, volto a Marc Ferro para ver "Nomadland" como uma poderosa e amarga visão da América, com a diretora Zhao oferecendo uma contra-análise de uma América que abandonou seus cidadãos, os deixou à deriva. 

O grande mérito de Chloé Zhao está em resgatar o afeto e a solidariedade entre as pessoas como alento, um caminho para se reconstruir um mundo que se quebrou, onde as camadas médias encontram-se aviltadas e se proletarizando. É o capitalismo tartaruga, em que diante da crise econômica, os pretendentes à vida confortável na velhice precisam recorrer à vida nômade, não como uma alegre vida de viajante, mas como uma maneira de sobreviver à política de Estado assentada numa cruel ideologia capitalista do darwinismo social.           

Visto na Loveflix, no dia 19/04/2021.
Cotação: 4 e meio/5

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...