Em Meu
Pai, um homem idoso recusa toda a ajuda de sua filha à medida que envelhece.
Ela está se mudando para Paris e precisa garantir os cuidados dele enquanto
estiver fora, buscando encontrar alguém para cuidar do pai. Ao tentar entender
suas mudanças, ele começa a duvidar de seus entes queridos, de sua própria mente
e até mesmo da estrutura da realidade.
O labirinto cruel de Zeller
Por Marco Fialho
O filme "Meu pai", dirigido maquiavelicamente por Florian Zeller, talvez seja um dos documentos mais impactantes socialmente falando sobre o Mal de Alzheimer até hoje já produzidos. O cinema mais uma vez reafirma um papel de comunicabilidade imprescindível para o mundo, afinal, todos conhecem casos semelhantes aos vividos pelo personagem Anthony, interpretado com extrema sensibilidade por Anthony Hopkins. Casos de Alzheimer adentraram nas famílias, muitas vezes as destruindo pela total dificuldade que é lidar com essa doença degenerativa.
Ao falar aqui da doença não estou esquecendo o filme em si, mas apenas situando como o cinema pode sim ser fundamental para repensar um mal que arrebatou diversas famílias mundo a fora. Pois é o atributo cinematográfico o mais importante, o que provoca, ou antes, leva a discussão para um lugar completamente novo. Em "Meu pai" ("The father" no título original) o ponto de vista é o diferencial, o que desloca a discussão sobre o Mal de Alzheimer (ou qualquer outra demência senil) para outro patamar. E a minha reflexão aqui parte justamente desse ponto, a de como Florian Zeller direciona nosso olhar e sensibilidade a partir da vivência do personagem Anthony.
A mola mestre da narrativa de "Meu pai" é a desorientação do personagem (que se transforma rapidamente também na nossa). Sem falar uma vez sequer em Alzheimer, Zeller propõe uma montagem labiríntica, a partir de um mergulho na mente de Anthony. A câmera segue então sua perspectiva enevoada. O mérito de Zeller (em sua estreia como diretor), que antes apenas trabalhou como escritor de romances e peças teatrais, e no cinema como argumentista, é traduzir o drama de um paciente com Alzheimer do teatro (peça de autoria do próprio Zeller) para o cinema, se utilizando dos elementos constitutivos da linguagem, no caso a montagem e o uso narrativo da câmera para atingir um resultado potente, claro que também amparado por um time de atores experientes no cinema. Deve-se também destacar a presença do experiente Christopher Hampton (Ligações perigosas, Método perigoso, entre outros) como corroteirista na adaptação cinematográfica.
Quero destacar em especial a primeira sequência, fundamental para delimitação da perspectiva na qual o diretor Zeller nos colocará durante os 97 minutos de filme. Escutamos um trecho da Ária da ópera (seria uma espécie de ironia?) King Arthur, chamada “Cold Song”, de Henry Purcell, que em uma primeira impressão indica tratar-se de uma música de abertura do filme. Só que não é bem assim. Desde o início da sequência a câmera acompanha a personagem Anne, interpretada pela sempre ótima Olivia Colman, filha de Anthony, chegando ao apartamento dele. A câmera a acompanha na rua, na entrada do prédio e adentrando ao apartamento do pai até chegar no quarto onde ele escuta com a ajuda de um headphone a música que ouvimos até então. Assim que ele retira o fone, a música desaparece para nós espectadores, isto é, Florian Zeller nos comunica assim que compartilhávamos com Anthony a música em execução, até a interrupção abrupta da filha. Logo de saída, o diretor explicita sutilmente o ponto de vista no qual acompanharemos no filme, mas que possivelmente só percebamos mais à frente. Me alonguei um pouco aqui, mas o fiz pela relevância dessa cena, pela construção cinematográfica delicada da direção, atenta aos mínimos detalhes.
Os ambientes, ou os cenários, explorados na trama também são fundamentais para a concepção artística de “Meu pai”. Os espaços colaboram para a sensação labiríntica que o público experimenta. Os apartamentos se assemelham, mas o espectador mais atento perceberá as diferenças entre eles, mesmo que o roteiro queira nos induzir que sempre fosse o mesmo, já que para Anthony sempre lhe parecia assim ser. A montagem proposta por “Meu pai” cria confusões sistemáticas tanto em relação ao espaço quanto aos personagens. As profusões de cuidadoras nos desorientam propositalmente, afinal a ideia parece que era essa mesmo, que nós espectadores incorporemos e vivenciemos como Anthony está se sentido em relação a vida.
A cada nova cena, “Meu pai”
vai se tornando um quebra-cabeça a ser montado não só pela nossa capacidade
racional, mas também pela nossa capacidade de se colocar emocionalmente no lugar do outro. A destruição
da memória não apaga a necessidade humana da experiência, muito pelo contrário,
cria uma perspectiva para outras novas. Permitir e entender essa viagem intrínseca
do sujeito é o paradigma colocado pelo filme. A angústia do personagem de
Anthony é criada quando o lado racional da história não embarca no universo
próprio que a doença propicia. O exercício da memória pode se revelar em "meu pai" também uma
forma de aprisionamento. Viver o agora sem a necessidade de referência é um
grito dado pelo corpo, uma recusa que pode se relacionar com traumas provocados
pela vida. O personagem de Anthony nos arremessa sem dó nem piedade para os
redemoinhos da sua mente. A ideia de Florian Zeller pode até esbarrar na
crueldade, mas permite como nunca um mergulho na aflição do outro. Entender o
filme significa sofrer com esse outro e durante os 97 minutos ver o mundo sob as suas perspectivas.
Visto na Loveflix, no dia 22/04/2021.
Cotação: 4 e meio/5
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