Em uma floresta subaquática na África do Sul, um cineasta desenvolve uma amizade improvável com um polvo e descobre mais sobre os mistérios do mundo submarino.
Por Marco Fialho
A produção do encantamento do animal pelo humano
"Uma borboleta dessa família, amante, na sua diáfana nudez, da sombra crepuscular das frondes, chamava-se Hetaera esmeralda. Tinha nas asas apenas uma mancha escura, de um rosa violáceo que durante o voo a assemelha a uma pétala arrastada pelo vento, já que nada mais se enxerga do bichinho. Havia lá ainda a borboleta-folha, cujas asas resplandecem em cima na plenitude de um triplo acorde de cores, ao passo que, embaixo, imitam com pasmosa exatidão uma folha, não só pela forma e a venação, mas ainda pela minuciosa reprodução de pequenas impurezas, gotas d'água fictícias, imagens de fungos verrugosos etc. Ao pousar entre as folhas com as asas postas, esse animal astuto desaparece por completo no ambiente devido ao mimetismo, de modo que nem sequer o mais voraz de seus inimigos o poderia localizar ali."
Extraído do romance Doutor Fausto, de Thomas Mann.
Depois de ter assistido a quase todos os filmes do Oscar 2021 e ter se apegado pouco aos longas ficcionais, confesso que me animei mais com os documentários. Destaco dois que merecem uma maior atenção: o sensacional e fundamental "Crip Camp", e o insinuante "Professor Polvo", ambos encontrados na plataforma da Netflix. São dois documentários tão distintos, tão díspares nas abordagens, mas que trazem um único ponto de interseção: a sedução da narrativa.
Ambos os documentários nos envolvem em seus magnetismos contagiantes. "Crip Camp" como um dos materiais de pesquisa e resgate dos mais fundamentais socialmente e como registro de luta política travada pelas pessoas com deficiência. Já "Professor Polvo" vai às profundezas das florestas marítimas para trazer mistérios que habitam um universo encantador, cruel e bastante desconhecido de nós terráqueos.
"Professor Polvo" muito me remeteu ao quase já centenário clássico "Nanook, o esquimó" (1922), de Robert Flaherty, filme que trouxe um frescor para as abordagens documentais, em especial as da exploração etnográfica. Flaherty reconstrói o cotidiano do esquimó Nanook e assim cria a abordagem do docudrama. Podemos dizer que os diretores Pippa Ehrlich e James Reed pretendem o mesmo, reconstruir a relação do mergulhador com um polvo-fêmea. Só que em bases bastantes diversas. Enquanto em Nanook, a reconstrução vem de uma emulação do próprio personagem a partir do seu próprio cotidiano, o que caracteriza o aspecto etnográfico da proposta de Flaherty; em "Professor Polvo", essa estratégia fica prejudicada pelo fato do personagem ser um animal, que por mais inteligente que seja não está ali para cumprir ordens ou dialogar com os diretores ou mesmo com o personagem-explorador.
O grande mote de "Professor Polvo" está na reconstituição do processo de aproximação entre o personagem humano e o animal, inclusive no começo do filme cria-se toda uma expectativa em torno da possibilidade desse contato ser ou não concretizado. Desenvolve-se uma narrativa a partir dessa relação, em uma tentativa de se humanizar ao máximo o mundo animal, como se aquela pequena floresta subaquática em águas rasas servisse como uma metáfora para a sociedade humana. A própria ideia de floresta encarna bem a esse propósito. Há elementos cinematográficos muito bem utilizados narrativamente, que colaboram para enredar o espectador, para que este não perceba possíveis descontinuidades que são características desse tipo de documentário e um esforço imenso de criar algo que seja traduzido como encantador. O que farei a seguir é tentar despetalar os elementos que possibilitam esse resultado de encantamento sentido pelo espectadores do filme.
Primeiro aspecto que quero mencionar é a própria narração, sempre realizada por Graig, o personagem-explorador. Há aqui sutilezas a serem assinaladas. Ele vive uma crise emocional (que não é muito explicitada), mas que faz ele voltar a morar na casa em que passou a infância, agora com o filho Tom. A narração que faz é marcada pelo tom intimista. Essa intimidade na maneira de contar muito se assemelha as técnicas utilizadas na meditação, quase que exaladas como mantra. O que também agrega essa sensação de intimidade é o fato da casa ser invadida pelas marés em dias de tempestade. Essa casa passa a ser uma expansão do próprio mar e é nela onde ele fala diretamente e sedutoramente para a câmera. A trilha sonora de Kevin Smuts está sempre presente para reafirmar essa intimidade, pois nos momentos mais cativantes ele saca uma música e um som ambiente etéreos que muito lembram as meditações voltadas para o relaxamento mental e o sono profundo. Mas claro que há o contraste pontual para as cenas de aventura e perigo.
O conceito fotográfico de "Professor Polvo" também contribui para a criação de uma atmosfera inebriante e cativante. O uso de cores predominantemente tranquilizadoras permeiam a maioria das cenas, com ênfase no azul, no verde e no lilás. Muitas cenas também se utilizam da câmera com velocidade mais lenta que induzem a uma sensação de harmonia e intimidade, que é a maior tônica do filme, fazer com que a relação entre Graig e o polvo torne-se próxima a nós. Essa aproximação também é possível graças à edição que se utiliza de elipses que simulam em diversos momentos uma continuidade espaço-temporal que ajudam camuflar os muitos cortes descontínuos existentes.
É muito interessante como o filme parte de premissas que são subliminares que envolvem a própria ideia de organização social e humanidade. Há um esforço bem sucedido de extrair de uma uma situação não humana algo de humano, de construir esse universo subaquático como um território de relações, nem sempre amigáveis que muito parece com a vida em qualquer espaço na superfície terrestre. Ficamos então com uma sensação de que a vida marinha muito se assemelha a nossa. Ou seria o inverso da vida terrena muito se assemelhar a vida marinha em sua luta pela sobrevivência diária? Há em "Professor Polvo" uma boa dose de indulgência. De que o homem perdeu muito ao se afastar da natureza. Mas ao meu ver, a natureza aqui aparece domesticada, (re)construída pelas armas do cinema, conforme já apontei melhor acima. Me parece que a mensagem já estava pré-determinada, não há aqui descobertas a serem encontradas durante o processo de filmagem, tudo já estava antecedentemente decupado pelo roteiro e reafirmado pela direção, e o polvo nesse caso está longe de ser o professor. Mais uma vez, o cinema faz algo animal parecer algo profundamente mais humano do que qualquer outro evento humano.
Visto no dia 18/03²2021, na plataforma Netflix
Cotação: 3/5
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!