Daniel Mantovani (Oscar Martínez), um escritor argentino e vencedor do Prêmio Nobel, radicado há 40 anos na Europa, volta à sua terra natal, ao povoado onde nasceu e que inspirou a maioria de seus livros, para receber o título de Cidadão Ilustre da cidade - um dos únicos prêmios que aceitou receber. No entanto, sua ilustre visita desencadeará uma série de situações complicadas entre ele e o povo local.
Um afiado filme argentino
Por Marco Fialho
Muitos sabem e comentam sobre a qualidade do cinema argentino no século 21. Mas dentro de um contexto mais amplo, “O Cidadão Ilustre”, dos diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat, merece uma menção especial, por ser um filme que traz uma gama de reflexões sobre a arte, sociedade, e mais especificamente a relação com o público. O filme aborda a distância entre criação e recepção de uma obra, mas sem esquecer todos os contextos possíveis, desde sua inserção entre os artistas, mídia, poder, gosto artístico e questionamentos acerca do papel da arte em uma determinada sociedade, onde a estrutura de classes é marcada pela diferença.
O mérito incontestável dessa obra está no seu roteiro (característica fundamental do cinema argentino dos últimos 20 anos), pensado para que não só as ações sejam o sustentáculo do filme, mas também cada detalhe cênico, gestual ou de figurino que possa acrescentar informações importantes para dar corpo à narrativa e alinhavar os temas a serem tratados no longa. Logo na primeira cena vemos o escritor Daniel Mantovani recebendo o Prêmio Nobel de Literatura, a maior de todas as distinções que um escritor pode receber em uma carreira literária. Os diretores aproveitam o ensejo para muito dizer sobre traços da personalidade do personagem, em especial sua arrogância perante a todos. Reparem que não é só o prêmio, o alvo da sequência, mas sim o pormenor, a forma na qual o personagem age no evento os grandes atributos do que vemos.
Mas a grande sacada de “O Cidadão Ilustre” está no confronto entre o escritor e sua pequena cidade natal, Salas, após longos 40 anos de ausência. Claro, Daniel não é mais o mesmo, entretanto a crueldade está em que a cidadezinha de Salas esta sim é exatamente a mesma em seu provincianismo tacanho. O filme trata desses momentos de embate entre o ilustre cidadão, inteligente, famoso, reconhecido como talentoso na Europa, continente no qual vive e sua retrógrada Salas, anacrônica, cafona e que esconde o conservadorismo atroz de seus principais moradores.
É em um concurso de arte, onde Mantovani participa como jurado, que o próprio conceito de arte será posto à prova. Qual obra pode ser considerada arte? Quais os critérios determinam ou permitem essa apreciação para uma devida qualificação? Além dessas perguntas, o filme também demonstra o peso que a sociedade tem sobre essas respostas. A influência da política (ou da politicagem?) como instrumento de pressão sobre a valorização de uma obra em detrimento de outra. Assim, a arte se integra à sociedade e ao mesmo tempo que pode contaminá-la, também, contraditoriamente, é impregnado por ela.
Algo interessante no roteiro de Duprat é como ele trabalhou o personagem de Daniel Mantovani, sem enaltecer sua figura por estar imbuído de talento e reconhecimento. Pelo contrário, o filme consegue estabelecer de que o mundo do qual saiu o escritor é o mesmo dos habitantes de Salas, e que o fato de ter vivido por 40 anos na Europa não o fez um ser humano melhor nem pior do que os outros, apenas mais intelectualizado e de sucesso internacional. Desse modo, de forma muito hábil, "O Cidadão Ilustre” consegue abordar as relações de poder e fama, que também envolvem as artes, com profundidade e sem maniqueísmos. Vale lembrar, que o escritor aceita o convite de visitar sua cidade natal muito mais por vaidade de ser o cidadão mais ilustre de sua história, do que por vontade de matar algum tipo de saudade de suas origens.
Visto na plataforma Netflix, em 25/03/2021
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