"Crimp Camp: revolução pela inclusão" é um documentário iluminado, além de necessário por colocar os pingos nos is no tema da inclusão das pessoas com deficiência. Está entre os indicados ao Oscar 2021 como melhor documentário e pode ser considerado um dos favoritos. O filme amarra imagens históricas com depoimentos e imagens de arquivo de seus diversos personagens, com uma montagem dinâmica que consegue mesclar bem essa diversidade de registros que formam no conjunto um mosaico rico. Um dos diretores, Lebrecht, é também narrador do documentário, que em face a variedade de personagens, tenta narrar o filme em terceira pessoa, o que para mim acarreta o único senão do filme, imputar uma impessoalidade em algo mergulhado também na pessoalidade e na experiência do diretor. Uma curiosidade: a produção executiva de "Crip Camp" é nada mais nada menos do que do casal Michele e Barack Obama.
Tudo começa em um acampamento criado por hippies para pessoas com deficiência no início dos anos 1970, daí o nome original do filme contemplar a palavra camp. Esse espírito libertário esteve na base de tudo o que viria ocorrer com os personagens que vão compartilhar vivências, ideias e projetos de vida. Assim, a passagem dos personagens por esse acampamento é encarado pelo diretores como uma espécie de preparação teórica para o que virá depois, pois eles serão retratados não só nesse momento, mas também por uma militância que não só não cessará como será levada à frente e aprofundada, tendo a ideia de liberdade e luta por ampliação de direitos civis das pessoas com deficiência.
Apesar de acompanharmos alguns personagens no decorrer de "Crip Camp", não dá para não mencionar a presença obstinada e guerreira de Judith Heumann. Desde a juventude ela demonstrou o quanto se pode aprender no processo da luta, nunca se contentando com uma conquista e sempre buscando ampliar os direitos conseguidos. Os diretores são muito felizes em conectar as lutas das pessoas com deficiência à história norte-americana contemporânea, de como a luta afirmativa dos panteras negras, a do feminismo e a militância contra a guerra do Vietnam estavam fortemente relacionadas. Os personagens de "Crip Camp" saem da posição de vítimas e partem para uma luta coletiva para serem incluídos como cidadãos e isso foi fundamental para que eles reivindicassem e conquistassem muitos direitos.
Fora a questão da luta em si por direitos e cidadania, os personagens trazem à baila discussões pessoais e individuais, como a da necessidade de privacidade e de se ter momentos sozinhos, o que sempre é bem difícil para as pessoas com deficiência. Mas o filme não se perde nessas questões íntimas, apesar de não deixar de mencioná-las e valoriza-las, os diretores sabem que o caminho coletivo foi o que fez a diferença e buscam com habilidade incorporar a discussão acerca da intimidade também como um dos direitos deles à felicidade e a autodeterminação.
Os diretores Lebrecht e Newnham constroem uma ideia de que o mundo torna invisível as pessoas com deficiência, que o mundo não foi pensado e constituído para eles. Os transportes públicos, os ambientes escolares, de trabalho e de lazer, enfim, todos os ambientes não contemplaram essa significativa parcela da sociedade. A própria arte não foi generosa com esses indivíduos, sempre deram a eles feições monstruosas e doentias, não os trataram como pessoas deste mundo, mas sim como aberrações. Eram vistos como pessoas assexuadas, sem atrativo. Essa imagem negativa é muito bem trabalhada pelo filme. Judith Heumann criou comitês, visitou instituições dedicadas às pessoas com deficiência e se deparou com maus tratos, denunciou a situação humilhante e degradante dos internos. Começou a lutar junto às organizações ligadas aos direitos humanos e com os políticos pela dignidade. Mobilizaram as ruas, pararam trânsito, protestaram, fizeram passeatas, ocupações de prédios públicos e foram conquistando direitos, um a um, governo a governo.
O grande mérito do documentário é juntar a ideia de luta coletiva, mas sem esquecer que estamos falando de pessoas, e por isso é fundamental lembrar que a busca da felicidade e do prazer devem ser elementos tão importantes quanto se conseguir um elevador em um ônibus ou uma rampa em um prédio. Há em "Crip Camp" uma humanização radical em sua proposta, de tornar cada personagem um ser de carne e osso, com sentimentos, com desejo sexual como qualquer outro indivíduo. O filme se passa sobretudo nos anos 1970, época em que a liberalização dos corpos, das drogas e dos comportamentos eram a tônica e esses são personagens desse tempo. O filme é brilhante ao inseri-los nesse contexto contestador e transgressor. Não casualmente, ouvimos músicas libertárias de Bob Dylan e Isaac Hayes pois o clima Woodstock estava ali o tempo todo tanto na diversão quanto nos espaços de luta.
"Crip Camp" é um desses filmes preciosos, obrigatórios, que não se pode passar batido. A importância dele está no fato de valorizar a luta coletiva como um veículo para que todos nós enquanto sociedade avancemos, além de enfatizar o quanto horizontal deveria ser a organização social. O filme sensibiliza e comove por ratificar a mensagem que todos os seres vivos, indiscriminadamente, deveriam ser respeitados em sua existência. Muito do que temos hoje são frutos dessas lutas implacáveis vividas por esses personagens incríveis retratados em "Crip Camp". Esse é um documentário ativista, com o poder de nos resgatar como seres coletivos e de luta. E o fato dos personagens serem pessoas com deficiência só acentua ainda mais os traços da persistência heroica da qual somos humanamente capazes.
Visto no dia 20/03/2021, na plataforma Netflix
Cotação: 4 e meio/5
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