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A MONTANHA MÁGICA (LIVRO), escrito por Thomas Mann

 

O progresso como esperança do humanismo burguês destroçado pela História

Por Marco Fialho

"Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer" 

                                                                                                           Italo Calvino 

Sinopse do livro: 

O jovem Hans Castorp vai visitar o primo Joaquim que está internado no luxuoso sanatório de Berghof voltado para o tratamento de problemas pulmonares, nos Alpes suíços. Rapidamente de visita se torna um enfermo e passa a viver a rotina austera do lugar. A vivência no local irá por à prova valores não só dele, mas de toda a Europa à beira da Primeira Guerra Mundial.       


A ducentésima postagem deste singelo blog precisa ser especial e conter notas com toques surpreendentes. Por isso ela não será de um filme, mas sim de um clássico da literatura, a primeira que escrevo sobre literatura, uma paixão pessoal que cultivo em paralelo aos filmes. Não almejo aqui tomar o lugar da crítica literária, seria um ato em demasia imprudente e desrespeitoso frente a autores que tanto admiro como Antônio Cândido, Alfredo Bosi, Otto Maria Carpeaux e outros tantos mais. É muito comum comigo assistir a um filme e querer prolongá-lo sua existência em mim e o impulso imediato é o de escrever sobre ele, para dar-lhe uma sobrevida, fazê-lo viver mais, pelo menos em mim, e quiçá na ventura de mais algum leitor. Assim ocorreu-me também com o livro "A montanha mágica" (1924), de Thomas Mann, um clássico de um fôlego arrebatador, que mesmo depois de ler as quase mil páginas ficamos ainda presos nele, em um sentimento de estranho pertencimento. Li a princípio que não havia adaptações para o cinema, mas depois de uma pesquisa descobri uma versão alemã de 1982, dirigido por Hans Geissendörfer. Antes não a tivesse achado. O diretor realiza uma versão onde não preserva os traços essenciais da obra e cria personagens que passam ao largo das descrições contidas na obra literária. Vários aspectos como a reflexão sobre o tempo e a ilusão contida na ideia de progresso capitalista passam batidas e fazem da obra cinematográfica um arremedo simplório e desimportante. Portanto, o melhor a fazer é ficarmos por ora na genial obra literária.

Mesmo conhecedor de minhas limitações frente à crítica literária, me sinto impingindo por uma força misteriosa a esboçar algumas linhas sobre "A montanha mágica". Logo descobrimos que a magia não está só no título. O que me chamou a atenção de imediato no livro foi a construção dos capítulos, o que no cinema analogamente chamaríamos de montagem. Mann organiza o livro em sete macros capítulos, embora o que mais tenha me encantado foram os subcapítulos que ele criou para cada capítulo, dando-lhes uma relativa independência, como se cada um possuísse uma autonomia, que é meramente aparente, pois obriga o leitor, a posterior, promover um diálogo entre as partes lidas. Assim, mesmo seguindo uma ordem cronológica a história não acontece numa lógica de causa e efeito, isto porque Mann desloca à ideia de tempo como elemento fulcral da obra.

Não casualmente atribui ao tempo facetas ditadas pelo próprio espaço onde a trama transcorre, as montanhas frias e secas dos Alpes suíços e logo na chegada de Hans Castorp no sanatório de Berghof para visitar seu primo Joaquim, que de chofre anuncia para o visitante que o tempo ali não se mede pelos dias, mas pelos meses. A extensão do livro assim se amarra ao sentido de tempo que Mann quer desenvolver. Há um convite para que o leitor entregue-se ao tempo, que usufrua o tempo tal e qual Hans Castorp o está vivenciando. A contagem rotineira (a da planície) passa a ser relativizada tanto para o personagem quanto para nós leitores. Logo, um outro tempo corresponde igualmente a uma nova vida, ou uma leitura e uma vivência diferenciada dela. No sanatório, o tempo interior se expande, afinal só resta a cada um ali viver o tempo de sua recuperação. O mergulho em si mesmo é inevitável e as informações sobre os personagens passam a ser suprimidas. Só Hans Castorp tem um passado mencionado, mais para situá-lo na hierarquia social como vindo de uma classe de comerciantes bem sucedidos do que para compreender motivações psicológicas dele. Vale lembrar que "A montanha mágica" discute uma determinada sociedade europeia, o que explica o fato do Sanatório Berghof ser internacional (entenda-se aqui europeu, voltado para uma elite circunscrita nesse território).

Que não se paire dúvidas aqui: "a montanha mágica" é sobre a Europa e a certeza disso está em cada parágrafo, embora essa força só fique clara bem no final do livro, onde essa ideia surge como uma avalanche em nossas mentes. Cada palavra e pontuação desse livro soa como um floco de neve a se avolumar até despencar como uma avalanche todo de uma vez só sobre nossas cabeças nas quatro últimas páginas, nos sufocando como poucas vezes sentiremos novamente em nossas vidas. 

Um dos aspectos mais interessantes de "A montanha mágica" é descobrir o quanto Thomas Mann tem tudo sob absoluto controle e isso é possível por uma estratégia muito delicada imposta desde o prólogo ou propósito conforme habilmente traduzido (sim me refiro as duas páginas iniciais antes dos capítulos). Embora o trecho seja curto ele é preciso:

    "...Não será, portanto, num abrir e fechar dos olhos que o narrador terminará a história de Hans Castorp. Não lhe bastarão para isso os sete dias de uma semana, nem tampouco sete meses. Melhor será que ele desista de computar o tempo que decorrerá sobre a Terra, enquanto esta tarefa o mantiver enredado. Decerto não chegará - Deus me livre - a sete anos. Dito isto, comecemos."

 Mann delimita ali algo muito importante em relação ao tempo e aproveita para anunciar o fim de um narrador onisciente e onipresente ao se colocar enquanto narrador. Não teremos no livro uma voz a falar de si (primeira pessoa), nem uma terceira inominável, que beira ao divino, a trovejar ou tergiversar sobre os personagens. Essa atitude de transparecer a autoria acontecerá em outros momentos do livro. O abrasileirado professor norte-americano Robert Stam se dedicou tanto na literatura quanto no cinema a estudos sobre os processos narrativos norteados pelo que ele nomeou como espetáculo interrompido, que acontece quando o diretor e/ou escritor se anuncia ao leitor/espectador. Há nesse viés narrativo um dado humanizador da escrita, e claro, do próprio processo laborial do artista que se constitui como participante da obra. Mas Thomas Mann talvez até avance em relação a essa "interrupção" na narrativa, na medida que logo no preâmbulo dispõe as regras e até mesmo indica alguns direcionamentos para o leitor, interferindo de antemão no próprio processo de leitura, como chamar a atenção do leitor para as reflexões sobre o tempo, aproveitando também para se apresentar como narrador. Encerra-se assim, de pronto, uma camada da escrita. Hans Castorp é um personagem moldado por Thomas Mann, criado para discorrer pensamentos, impressões e sentimentos do autor acerca desse mundo caótico e perdido. E Castorp se desenha assim pelo autor, como um personagem coadunado com o mundo, que o representa bem em suas fraturas.       

Nessa altura da análise seria de bom tom fazermos algumas delimitações. O tempo como elemento a permear o todo e a própria construção do texto, mas não como algo vago, afinal tudo que vivenciamos em "A montanha mágica" vem da experiência de Castorp, não há uma parte do livro onde a narrativa se desvincule dele. Tudo existe em torno da sua existência. Assim Mann circunscreve algo fundamental: o tempo não é algo etéreo, antes de ser metafísico é orgânico, pessoal, porém intransferível. O tempo vincula-se a um corpo, a uma existência, e aqui é a de Hans Castorp. Esse é o poder (a mágica?) dessa montanha alpina, a sua alma. E cabe ao narrador tentar transpor o intransponível para a narrativa. E esse é o grande desafio do escritor.

Outra delimitação necessária é relação à história e à cultura em "A montanha mágica". Mann trabalha a cultura em diálogo estrito com o fenômeno histórico, todavia com uma sutileza extrema e a atenção aos detalhes como crucial durante a longa escrita do livro, pois são camadas presentes, embora descontínuas. Volto à caracterização do sanatório como uma instituição médica internacional e voltada para uma elite europeia abastada. Ali se impõe uma disputa cultural expressiva. Hans Castorp pertence a linhagem de uma Europa culta, pernóstica e dominadora. As lutas imperialistas típicas do final do século 19 estão imiscuídas em várias descrições e diálogos elaborados por Thomas Mann. Há uma outra linhagem representada pelos russos, eslavos e poloneses, sempre menosprezados (independentes de serem ricos), desqualificados em comentários e observações maldosas sobre os hábitos e traços físicos. 

Entretanto também há nuances nas relações. Hans Castorp teve na infância um flerte com um colega de escola, o eslavo Pribislav Hippe, que possuía olhos quirguizes (olhos puxados característicos de algumas regiões da Ásia). Castorp sente-se fortemente atraído por esse olhar, o que denota uma queda dele pela alteridade (sexual e étnica), embora haja uma forte interdição cultural que impede uma maior aproximação com o seu objeto de desejo. No sanatório de Berghof essa fascinação recai e se transmuta sobre a russa Mme. Chauchat, rapidamente transformada em paixão arrebatadora, apesar da inclinação platônica, e logo depois abruptamente confessada à própria amada. Vale lembrar que o próprio Thomas Mann antes de se casar e ter vários filhos, também teve uma paixão por um homem e esse detalhe deve ter o influenciado a inserir esse aspecto sedutor em "A montanha mágica", o mesmo fato que ocorreu igualmente em "Morte em Veneza" (1912), um clássico anterior de sua autoria.  

Mann constrói o percurso de Castorp no sanatório como um processo de autodescoberta, um movimento que em muito contrasta com a educação rígida e conservadora recebida na infância, que dificultará em demasia o caminho a ser percorrido por esse jovem espírito nas montanhas alpinas. Mme. Chauchat representa para Castorp um quê de inesperado, de imprevisível. Ela bate a porta do refeitório todos os dias, o que para ele significa uma terrível falha de educação básica. A atração de nosso herói por Mme. Chauchat o aproxima de uma outra cultura, corriqueiramente tomada como inferior pela educação que teve de berço, e essa demora em aceitar esse amor indesejável irá retardar de tal maneira a sua declaração, o que impactará no futuro da relação dos enamorados. Só quando durante um almoço uma comensal descreve a pretendente para Castorp, que sua imagem acerca de Chauchat parece aquiescer. Transcrevo a seguir essa reveladora descrição: 

    "... E aí está ela. Nem é preciso levantar os olhos para saber quem entrou. Claro, ali vai ela. Que jeito engraçado de andar! Exatamente como um gato que se encaminha para o prato de leite! Eu gostaria de trocar de lugar com senhor, para que lhe fosse possível contemplá-la tão desembaraçada e comodamente como eu. ... Agora cumprimenta a sua gente... O senhor deveria ver isso; é delicioso observá-la. Sim senhor, é mesmo um encanto de mulher, uma criaturinha muito mimada, e isso explica seu relaxamento. A gente tem que adorar pessoas assim, queira-se ou não. Mesmo que nos aborreçam pelo seu desleixo, a própria irritação é um motivo a mais para simpatizarmos com elas. É uma grande felicidade, essa de exasperar-se e de se ver forçado a amar, apesar de tudo..." 

Esse depoimento nos chega misturado de sentimentos controversos. Há um reconhecimento pelos traços que fazem de Mme. Chauchat uma mulher sedutora, a alteridade como imã, embora eivada de preconceitos em relação ao seu andar e de um suposto desleixo, em especial quando se diz, "amar, apesar de tudo". Há uma visível não aceitação, uma descrição como se Chauchat fosse uma extraterrestre, uma não humana, que anda tal e qual a um animal esfomeado e selvagem. Mann sempre introduz esses comentários, que muito dizem acerca dessa elite europeia preconceituosa. Uma elite que acredita que o progresso capitalista elevará a humanidade, a levará à harmonia consagradora. Mas Mme. Chauchat representa muito mais que isso. Ela pode ser vista como uma nova mulher a descorcertar os homens com um comportamento independente e este fato é o que choca realmente. Ela é casada e viaja sozinha com outros homens, além de paquerar mais tantos outros. Se ainda não pode ser uma mulher financeiramente independente, decerto o é nas ações e posturas frente à vida e os costumes. E a relação dela com Castorp naufraga muito porque ele não está preparado para enfrentar essa nova mulher. A maneira dele conceber o tempo não coaduna com o dela. Isso é um fato e Mann desenha isso com precisão cirúrgica. 

Deve-se registrar também o próprio simbolismo do sanatório Berghof, onde o médico-chefe, o Sr. Behrens, decide o destino de vários pacientes, inclusive quando poderão partir. Esse papel é humanamente invasivo e estabelece a relação entre os homens e a medicina, um delegar de autoridade, a ponto dos médicos decidirem acerca dos corpos dos homens, sobre quem está enfermo e quem está são. Abre-se uma discussão sobre uma ideia de racionalidade que se contrapõe à irracionalidade, também representada pela figura do pedagogo italiano Ludovico Setembrini, um enciclopedista da razão burguesa, que encanta pela verve discursiva e pela capacidade de estruturar um discurso sobre o futuro da humanidade (mas que será também traída por ele), um crítico do Antigo Regime e um apologista do Estado Nacional burguês (que igualmente o trairá).

Como contraponto a Setembrini, Mann cria o personagem de Naphta, o judeu convertido ao catolicismo, um pedagogo conservador defensor do pensamento escolástico. Esses dois personagens estarão em vários momentos se enfrentando intelectualmente, e disputando uma primazia no pensamento de outros personagens, em especial o de Hans Castorp. Mann foi um grande interessado nessas discussões, dedicou um vasto tempo a publicar resenhas de diversos filósofos, políticos e escritores expressivos, dominava esses discursos como poucos e traz para "A montanha mágica" fervorosos embates políticos e filosóficos. Para Castorp esses debates eram instrutivos para a sua jornada de autoconhecimento. Setembrini sempre nos brinda com análises eloquentes sobre o mundo e a humanidade, além de destilar uma eterna desconfiança aos médicos do sanatório, chamando Behrens sarcasticamente de Radamanto (personagem da mitologia grega que julgava os mortos que entrariam no inferno). Setembrini também sinalizava a disparidade entre a planície e a montanha, sublinhando a última como receptáculo da posição horizontal (relativa a posição física aos doentes), que simbolicamente representava a inércia. Lembrando que Setembrini chamava Castorp de "enfermiço da vida", o que ampliava a própria ideia de doença do jovem para muito além do edema pulmonar que carregava, sugestionando algo compatível a uma crise espiritual. 

Pensar em Ludovico Setembrini é colocar-se mesmo no terreno do pensamento. A sua aparição está sempre relacionada às angústias do mundo, mas sobretudo um esforço pela razão humana, de se entender o funcionamento da sociedade e a participação do homem nesse complexo mundo. A entrada do enigmático Naphta apenas salienta os conflitos civilizacionais presentes nos últimos séculos, o destino ambíguo da humanidade, as lutas do espírito e as guerras. Setembrini inspira igualmente uma ideia de dualidade, de opostos em confrontação. "A montanha mágica" parece se conformar assim, por extremos: doença/saúde; planície/montanha; razão/religião; horizontal/vertical; tempo/movimento; interior/exterior; Europa/outros continentes. Os confrontos entre o mestre italiano e o judeu convertido Naphta sublinham esse tom até o desfecho do livro, eles representam a batalha travada na planície, os conflitos que dividem e atravancam a sociedade.

"A montanha mágica" oscila complexamente entre a aventura pessoal de Hans Castorp e as relações que estão para além do indivíduo, mas que antes perpassa inteiramente por ele. Perscruta a maravilhosa ideia que somos bichos domáveis dentro de um universo indomável, cruel, que age ora sob os desígnios da razão ora por ditames acachapantes da realidade histórica, com seus agentes mais perversos e movidos pelo egoísmo, ambição de poder e dinheiro. A vida desse indivíduo, desse tal Hans Castorp, lhe transpassa, atinge não só o seu tempo, como também o nosso. Mann estabelece uma estranha simbiose com o leitor ao narrar uma história que pode ser a da nossa própria vida, e que de certa maneira o é. O nascimento, a vida e a morte não se materializam em uma linha reta, elas se amarram invisivelmente em nós, tal como Mann evidencia nessa sábia reflexão acerca do tempo: 

    "O tempo, mas não aquele que marcam os relógio de gare, cujo ponteiro grande dá saltos bruscos, de cinco em cinco minutos, senão o indicado por relógios pequeninos, cujo movimento de agulhas permanece imperceptível, ou o tempo que a relva leva para crescer, sem que nenhum olho o perceba, apesar de fazê-lo constantemente, o que um belo dia se torna um fato inegável..." (p. 974).

A presença invisível do tempo é a matéria-prima de "A montanha mágica", de como atos e vivências se acumulam e formam camadas transformadoras. O tempo em Mann se alterna entre expansão, concentração e choque, embora não exista regra nem bula para cada uma dessas manifestações. A magia está aí, no imprevisível e na relação que cada um consegue traçar para si e a liberdade humana está inserida nessas relações, nas possibilidades ditadas pela história (coletivo) e arbítrio (indivíduo).

Se discutimos aqui o tempo como a matéria-prima de "A montanha mágica", flutuam ainda sobre esta obra magnífica inúmeras metáforas sobre a vida, a história, o amor, a morte, a guerra, entre tantas outras. São camadas de pensamento e vivências que vão se sobrepondo em cada subcapítulo do livro. Sutilmente, Mann agrega o tempo histórico por meio dos personagens. A época retratada é construída por comentários e ações de cada um deles. Como cada povo se mostra culturalmente e também como concebe a cultura do outro. Apesar de isolar seus personagens em um sanatório nas montanhas, Mann demonstra como são indivíduos partícipes de um mundo prestes a se colapsar ao retratar uma burguesia parasitária, incapaz de se ver enquanto um coletivo viável, presa em amarras construídas historicamente, que se arraigaram até causar imobilização. Como são inócuos os discursos acadêmicos e beletristas de Setembrini e Naphta, mesmo eles representando pensamentos tão antagônicos, que terminam por se equivaler, pelo empertigamento que revela um resquício do comportamento nobre e decadente na burguesia europeia em ascensão. Para Mann vivemos sempre assentados e guiados pela ilusão, por isso "A montanha mágica" versa também sobre a alienação humana perante a história. De o quanto somos enquanto indivíduos enredados por uma força maior e incontrolável, que nos torna irreversivelmente impotentes. Há nesse pensamento de Mann um quê de crueldade, como se nos dissesse ininterruptamente: olhe como é a vida, a sua vida. O que ela é, e como vai acabar!

Não casualmente a morte está permanentemente presente em "A montanha mágica", pois a obra está ali para expor muitas dessas facetas mórbidas. A de um tipo de homem; de sexualidade; de um modelo de Estado; de conceitos; de relações humanas e tantas outras que podem ser aqui lembradas e elencadas. Portanto, a morte está tanto no sanatório quanto na planície. Talvez trata-se de algo até maior: a morte da humanidade e da ideia de progresso, sendo a grande guerra uma de suas consequências mais imediatas. Para Mann, a história é implacável, destrói o espírito e cria destroços materiais. Esse desafiador livro termina com uma pergunta e nada mais razoável do que também encerrar essa reflexão sobre ele com uma outra: como se edificar algo quando o tempo da destruição se expandiu enquanto o tempo da vida humana se acelerou?                                    

Romance lido no período da primavera/verão carioca de 2020/2021. Artigo escrito em fevereiro de 2021.

Memória do tempo em "A montanha mágica", dividida por capítulos:

Capítulo 1 - A chegada de Hans Castorp ao sanatório Berghof para visitar o primo, o militar Joaquim. Apresentação do espaço e da rotina do sanatório.

Capítulo 2 - Voltamos ao passado para conhecer Castorp e suas origens burguesas de sua família.

Capítulo 3 - Apresentação dos personagens coadjuvantes que estão internados no sanatório e as impressões de Castorp sobre eles.

Capítulo 4 - trata do período de 3 semanas de Castorp como visitante, o tempo é introduzido e discutido como elemento fundamental dessa história, e é a partir desse instante que ele vai se alargando no livro. A nossa impressão sobre o tempo para a ser a percepção de Castorp que vai se alterando. Os capítulos também se tornam mais arrastados e morosos. É discutida a música como distração (alienação) do tempo. Momentos de reflexão sobre si mesmo e lembranças infantis (o reencontro de Castorp com o olhar quirguiz de Pribislav Hippe). O encantamento inconsciente pela alteridade. A repetição dos olhos com Madame Chauchat denota um destino fadado ao fracasso amoroso. Palestra de Krokowski. Ele diz: "O sintoma da doença nada é senão a manifestação disfarçada da potência do amor; e toda doença é apenas amor transformado." p. 177 Srta. Engelhart fala de Mme. Chauchat. Castorp pensa nela de maneira especial. Com menos de duas semanas Castorp compra um termômetro. O final do capítulo é a consulta de Castorp onde Behrens lhe mostra que ele também está com os pulmões comprometidos e que deveria ficar no sanatório.  

Capítulo 5 - Castorp começa o repouso e pensa mais sobre o sentido do tempo e da vida. Castorp se vê perdidamente apaixonado por Mme. Chauchat. Castorp visita Behrens para ver o quadro que retrata Mme. Chauchat. Discutem sobre o que é o corpo humano, como ele se constitui. Nesse capítulo o tempo se distende, as ações mais cotidianas são destacadas nos subcapítulos e reflexões sobre a vida e a fisiologia do corpo humano. Ele lê sobre a complexa anatomia humana. Ao ver as mortes e o quanto elas eram abundantes no sanatório e escondidas, Castorp tem a ideia de levar flores aos pacientes em estado grave. O cinema como um espectro da morte, o passeio no cemitério. O baile de carnaval e a conversa em francês com a Mme. Chauchat após anunciar sua partida, quando Castorp declara seu amor a ela. E assim se passaram 7 meses. (p.470) - metade do livro.

Capítulo 6 - A tristeza de Castorp (elevação da temperatura) após a partida de Mme. Chauchat. Ele decide esperar por sua volta. Setembrini deixa o sanatório, mas continua morando nos Alpes (Davos Platz). Castorp e Joaquim reencontram com Setembrini na rua e conhecem Naphta. Seus pensamentos são opostos (razão x pensamento católico). Castorp, curioso, visita Naphta algumas vezes e é alertado por Setembrini sobre o perigo das ideias retrógradas de Naphta. 1 ano de Hans Castorp no sanatório. 562 p.. Joaquim decide partir mesmo com um diagnóstico contrário de Behrens. Castorp recebe a visita do tio. Sabemos da vida de Naphta e mais uma discussão acalorada dele com Setembrini sobre a Idade Média. Castorp compra esquis e começa a praticar. Se perde em uma nevasca ao subir a montanha. O primo piora e volta a Berghof. O primo diz que encontrou Mme. Chauchat em Munique. Ela viajava pela Europa. Joaquim conta orgulhoso de suas manobras militares. Encontram Naphta e Setembrini e discutem fervorosamente sobre a ideia de Deus. O estado de saúde de Joaquim degenera e ele morre. 

Capítulo 7 - Reflexões sobre o tempo: "o tempo é uma ilusão, um presente imutável". O holandês Peeperkorn chega a Berghof, acompanhando Mme. Chauchat e chama a atenção pelo seu jeito desenvolto e espalhafatoso. Jogam, bebem, comem e conversam até tarde, às custas dele Peeperkorn. Promovem a partir de então vários encontros regados à bebida e comida. Peeperkorn fica de cama e Castorp o visita. Conversam sobre Chauchat. Peeperkorn se suicida numa madrugada. Mme. Chauchat deixa o sanatório abruptamente. Algumas atividades preenchem o tédio do sanatório: a fotografia, a filatelia, tipos diferentes de chocolate, desenhar porquinhos, matemática, esperanto, jogos de baralho entre outros passatempos. Setembrini fala com Castorp sobre a possibilidade de uma grande guerra entre as nações. Behrens descobre que Castorp tinha um estreptococos que era o causador de sua febre e toma vacinas. A chegada da vitrola. A música e o sentido profundo de amar para a transformação da vida e da morte. As visões espíritas da virginal Ellen Brand e o encontro de Castorp com Joaquim. Setembrini e Naphta discutem com veemência e acaba em um duelo. Depois de 7 anos no sanatório, Castorp sai para ir à guerra (1ª guerra mundial). Reflexões sobre o tempo: "O tempo, mas não aquele que marcam os relógio de gare, cujo ponteiro grande dá saltos bruscos, de cinco em cinco minutos, senão o indicado por relógios pequeninos, cujo movimento de agulhas permanece imperceptível, ou o tempo que a relva leva para crescer, sem que nenhum olho o perceba, apesar de fazê-lo constantemente, o que um belo dia se torna um fato inegável..." (p. 974).  Morre o tio de Castorp, sua única relação com a planície. Castorp já vive liberto do tempo, sem relógio e calendário. Chega a guerra e Castorp vai decidido ao seu encontro. Mortes e destruição fazem agora parte da vida de Castorp. Com o final em aberto, o narrador diz: "Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto na tua obra de 'regente', viste brotar da morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?" ( p. 986) 

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