Pular para o conteúdo principal

OSTINATO - Direção de Paula Gaitán

O pulo do gato de Gaitán 

Por Marco Fialho

A 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes teve como filme de abertura "Ostinato", de Paula Gaitán, a grande homenageada desta edição. Até o dia 30 de janeiro o público terá a oportunidade de assistir a outros filmes da diretora, que sempre traz uma marca autoral e de liberdade criativa em suas obras. "Ostinato" é um documentário com o músico Arrigo Barnabé, onde Paula vasculha o pensamento dele acerca da música e como isso interferiu e interfere no processo criativo do compositor. Gaitán trabalha livre de cronologias e de continuidade espacial, e tem como interesse o mundo das ideias que permeiam o personagem de Arrigo. Como o compositor transitou na eclética e diversa música brasileira? Qual o seu lugar nesse universo tão amplo e cada vez mais impreciso da música brasileira? São perguntas sem respostas, que trazem mais questionamentos que certezas, ainda mais que Arrigo não é exatamente um profissional fácil de ser destrinchado em nenhum aspecto.

Vanguarda, música dissonante, relação com o público, gosto musical, música erudita e popular são temas presentes no documentário. Mas evidente que a junção de Arrigo e Gaitán não poderia resultar em algo banal e puramente descritivo. Os temas soam mais como pretextos para Gaitán interrogar e ir além das imagens e sons. A diretora propõe uma aventura investigativa acerca do próprio ato de realizar um documentário, envolve o público nos meandros da criação de um filme e esse é o fato mais interessante de "Ostinato". 

A abordagem proposta por um diretor em relação ao objeto de filmagem de um documentário pode ser um "pulo do gato" ou quem sabe a sua ruína. Ficar preso e fascinado ao tema ou personagem pode obscurecer o realizador e levar o filme para um painel, um levantamento de dados históricos e nada mais que acrescente, um tipo de documentário meramente acumulador e que nada questiona, apenas cria para si uma espécie de cegueira apática e apaixonada do próprio realizador. Respeitar o personagem é humanizá-lo, deixá-lo fluir inclusive pelas contradições que possa despertar. Em "Ostinato" Gaitán flagra Arrigo assim, o surpreendendo, permitindo que ele se mostre inclusive fragilizado, exposto e pleno pelas dúvidas que suscita. 

Como esquecer o momento em que a voz de Paula assume o protagonismo e faz Arrigo um mero coadjuvante de seu depoimento. Bastou ele proferir a palavra "escatologia" para que um possível diálogo virasse um solilóquio interminável e maravilhoso da diretora, sempre em off. A imagem continua sendo a dele, entretanto o que assistimos são as reações de dúvidas e incertezas. Ela tenta fazê-lo esmiuçar o porquê dele usar a palavra escatologia para descrever o que tem de revolucionário na música atual. Arrigo parece estar incomodado e não consegue concatenar uma explicação que fosse minimamente lógica sobre o tema que ele mesmo trouxe à baila. Esse fato diz mais sobre o filme do que sobre Arrigo, pois ele estabelece a relação da diretora não só com o personagem, mas também com o próprio filme que está fazendo. 

A partir dessa longa cena (21 minutos) fica então a pergunta: qual o papel e o limite do diretor em uma entrevista? Felizmente, o filme não responde a isso, ele cria e impõe seu método investigativo no próprio ato de filmagem com Paula Gaitán tornando-se a essa altura também personagem de seu próprio filme, o que evidencia que a escolha de um personagem ou objeto pelo diretor é o impulso detonador do filme e esconder isso (e essa é a prática mais corriqueira adotada por diretores) seria uma inutilidade ou mesmo uma falta de compromisso do diretor frente ao elemento potente que é derivado das escolhas em última instância ideológicas que o levou a realizar o filme.        

Arrigo por sua vez mostra-se confuso em vários momentos e demonstra uma dificuldade de situar a música que faz no mundo de hoje e o quanto ele está deslocado nesse panorama musical atual. Essas fragilidades, que às vezes irrompem em silêncios, gagueiras, frases inconclusivas, impaciência consigo próprio e baixadas de cabeça estão todas ali registradas, Paula não disfarça as inseguranças do músico e na montagem se permite deixar o personagem exposto. Esse procedimento é bastante salutar e de nada altera a imagem de admiração em relação ao personagem, apenas a enriquece e amplia. A maioria dos realizadores mutilariam o filme para poder exibir apenas uma imagem "positiva" e segura do seu objeto de estudo (e o fazem simplesmente por paixão ao personagem).    

A partir desses fatos quero esmiuçar mais o dispositivo de montagem (aqui a cargo de Tomás Von Der Osten) habilmente utilizado como composição fílmica pela direção de Paula Gaitán: a da repetição de cenas. Os vinte minutos finais vemos uma entrevista de Arrigo sem intervalos, onde ele disserta sobre criação musical em geral, tentando compreender os processos artísticos do mundo de hoje. Há aí um ardil poderoso. Paula na primeira parte do filme já havia usado um dos trechos desse depoimento de Arrigo, só que editado onde apenas vemos e ouvimos uma parte entrecortada dele. O que acontece é que esse depoimento quando visto dentro do contexto original ele expressa uma coisa e quando visto entrecortado (editado) expressa outra. Paula Gaitán trabalha de uma só vez não só a questão da repetição como estratagema narrativa, mas acrescenta ainda um dado novo, o da fala fora do contexto. 

Esse dado autoritário (muito aceito via de regra nos documentários), da escolha de cenas dentro de um depoimento é um mecanismo usual, mas aqui Paula chama atenção para um aspecto relevante, de o quanto esse ato pode redefinir, e mais ainda, o quanto ele pode até mesmo ressignificar uma fala e é nesse ponto que o "Ostinato" cresce. A palavra ostinato (motivo ou frase musical que é persistentemente repetido numa mesma altura) serve não só como ponto de partida investigativa acerca da obra de Arrigo como também um método para a concepção do filme, e é na montagem que esse elemento se estrutura e avoluma.   

Em "Ostinato", Paula Gaitán vislumbra-se como uma realizadora madura, consciente do papel e das limitações de um diretor de cinema. O maior mérito é usar as limitações não como um empecilho, mas sim por um viés criativo. Se o personagem expõe limitações, inclusive na hora de teorizar sobre como situar o trabalho que faz no contexto musical atual, porque o diretor precisa ser o elemento a costurar adereços formais ou criar manipulações para escamotear ideias imprecisas do entrevistado em uma embalagem que soará artificial? Tem hora que a sinceridade do processo significa de uma só vez um mérito e eficácia, o tal pulo do gato que mencionei acima.    

Visto no dia 22/01/2021, na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes (on line)

Cotação: 4/5       

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...