Pular para o conteúdo principal

AÇUCENA - Direção de Isaac Donato


Documentando o inusitado mundo cor de rosa de D. Guiomar  

Por Marco Fialho

A competitiva da Aurora da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes começou quente com "Açucena", de Isaac Donato. "Açucena" é desses filmes que desde a primeira cena impõe ao espectador um ritmo próprio. Há uma curiosa relação intrínseca que ele cria entre interior/exterior nas cenas. Um filme que incita a dubiedade. Apesar de ser um documentário aparentemente simples, existe um ar de mistério que logo se estabelece, um certo jogo sensitivo, onde o narrar não se mostra de maneira explícita, vai se construindo pelas bordas da inusitada história de D. Guiomar e o seu misterioso mundo cor de rosa. Esse é o gracejo deste filme, o que ele tem de precioso para ser vivenciado. Há um frescor indiscutível que permeia todo o filme, uma alteridade que nos atrai ternamente para as imagens e sons que emanam dele.

A câmera fixa e os planos longos, marcas do documentário que se utiliza do dispositivo observacional, são ditados pelo diretor Isaac Donato que nos convida permanentemente para a contemplação, para um fluir narrativo sem pressa, onde toda uma sonoridade delicada construída habilmente pelo grupo "O grivo" contribui para o clima desejado. Essa indeterminação sobre o que vemos, assim posta sobretudo em um documentário, é uma marca de ousadia e desafia constantemente as fronteiras com o ficcional, o que torna tudo muito tentador (ou desestimulante) para o espectador. Há um predomínio do sensorial em "Açucena", numa rica textura de cores fortes como o vermelho, o rosa, o branco, o verde que demarcam a força e um quê de agradável que advém desse universo lúdico e belo. 

O ápice do filme chega numa festa oferecida à suposta boneca açucena (a maneira que a protagonista encontrou para celebrar seus 7 anos ad aeternum), onde pessoas e bonecas participam em pé de igualdade do festejo, enquanto a dona das bonecas ganha mais bonecas ainda para aumentar sua coleção. Na maior parte do filme assistimos a preparação da festa, o cuidado com cada detalhe traduz um ritual repleto de um amor que beira um apego religioso. As roupas, os cabelos, o banho e a limpeza do espaço são tratados com o devido esmero. O cuidado que os personagens devotam se espelha na construção narrativa de Isaac Donato, de como ele constrói pacientemente a passagem do tempo no filme. E por falar em espelhamento, vale lembrar de uma longa sequência onde os personagens estão todos refletidos por um espelho, como se Isaac estivesse nos dizendo para olhar com cuidado para esse estranho mundo. A ternura da construção narrativa pode trazer uma visão enganadora sobre uma certa ingenuidade que paira no ar. Mas temos que pensar que Davis Lynch provavelmente se afeiçoaria por D. Guiomar e isso só aumenta o mistério e encanto do filme. 

Se "Açucena" é um filme para ser apreciado com os olhos, também podemos dizer que é um ótimo filme para ser escutado, graças a misteriosa trilha composta pelo "O grivo". A maneira pela qual o diretor nos apresenta o espaço em torno da casa de D. Guiomar é de uma singeleza surpreendente. Em uma cena ela brinca com as bonecas e a câmera é colocada por trás de outras duas bonecas, como que ele nos permitisse espreitar a brincadeira tal como um voyeur a olhar algo proibido.

Apesar de nada ser dito em relação a cidade de onde a história transcorre, é notório que tudo se passa em um município do interior ou em uma região periférica da capital, onde reina a tranquilidade. Toda essa calmaria que flui entre o exterior e o interior da casa está registrado na própria filmagem, quando ela opta por trabalhar em algumas cenas com o extracampo. É como se Isaac quisesse igualar esses dois campos, tanto o da casa quanto o do exterior da casa. Assim o filme cria uma unidade etérea entre os ambientes, personagens e objetos. "Açucena" é um filme único em nossa filmografia contemporânea, diferente e enigmático sobre uma mulher que eterniza ritualisticamente a própria infância. É uma maneira inusitada de Isaac nos aproximar do estranhamento de sua proposta.

Visto no dia 23/01/2021, na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes (on line).
Cotação: 4/5   


  


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras difere