Documentando o inusitado mundo cor de rosa de D. Guiomar
Por Marco Fialho
A câmera fixa e os planos longos, marcas do documentário que se utiliza do dispositivo observacional, são ditados pelo diretor Isaac Donato que nos convida permanentemente para a contemplação, para um fluir narrativo sem pressa, onde toda uma sonoridade delicada construída habilmente pelo grupo "O grivo" contribui para o clima desejado. Essa indeterminação sobre o que vemos, assim posta sobretudo em um documentário, é uma marca de ousadia e desafia constantemente as fronteiras com o ficcional, o que torna tudo muito tentador (ou desestimulante) para o espectador. Há um predomínio do sensorial em "Açucena", numa rica textura de cores fortes como o vermelho, o rosa, o branco, o verde que demarcam a força e um quê de agradável que advém desse universo lúdico e belo.
O ápice do filme chega numa festa oferecida à suposta boneca açucena (a maneira que a protagonista encontrou para celebrar seus 7 anos ad aeternum), onde pessoas e bonecas participam em pé de igualdade do festejo, enquanto a dona das bonecas ganha mais bonecas ainda para aumentar sua coleção. Na maior parte do filme assistimos a preparação da festa, o cuidado com cada detalhe traduz um ritual repleto de um amor que beira um apego religioso. As roupas, os cabelos, o banho e a limpeza do espaço são tratados com o devido esmero. O cuidado que os personagens devotam se espelha na construção narrativa de Isaac Donato, de como ele constrói pacientemente a passagem do tempo no filme. E por falar em espelhamento, vale lembrar de uma longa sequência onde os personagens estão todos refletidos por um espelho, como se Isaac estivesse nos dizendo para olhar com cuidado para esse estranho mundo. A ternura da construção narrativa pode trazer uma visão enganadora sobre uma certa ingenuidade que paira no ar. Mas temos que pensar que Davis Lynch provavelmente se afeiçoaria por D. Guiomar e isso só aumenta o mistério e encanto do filme.
Se "Açucena" é um filme para ser apreciado com os olhos, também podemos dizer que é um ótimo filme para ser escutado, graças a misteriosa trilha composta pelo "O grivo". A maneira pela qual o diretor nos apresenta o espaço em torno da casa de D. Guiomar é de uma singeleza surpreendente. Em uma cena ela brinca com as bonecas e a câmera é colocada por trás de outras duas bonecas, como que ele nos permitisse espreitar a brincadeira tal como um voyeur a olhar algo proibido.
Apesar de nada ser dito em relação a cidade de onde a história transcorre, é notório que tudo se passa em um município do interior ou em uma região periférica da capital, onde reina a tranquilidade. Toda essa calmaria que flui entre o exterior e o interior da casa está registrado na própria filmagem, quando ela opta por trabalhar em algumas cenas com o extracampo. É como se Isaac quisesse igualar esses dois campos, tanto o da casa quanto o do exterior da casa. Assim o filme cria uma unidade etérea entre os ambientes, personagens e objetos. "Açucena" é um filme único em nossa filmografia contemporânea, diferente e enigmático sobre uma mulher que eterniza ritualisticamente a própria infância. É uma maneira inusitada de Isaac nos aproximar do estranhamento de sua proposta.
Visto no dia 23/01/2021, na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes (on line).
Cotação: 4/5
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