Pular para o conteúdo principal

SOMBRAS QUE ASSOMBRAM: O CONTURBADO CONTEXTO DO EXPRESSIONISMO NO CINEMA ALEMÃO DOS ANOS 1920 (Artigo)

Artigo escrito por Marco Fialho

IMPULSOS IRRACIONAIS - O EXPRESSIONISMO COMO TEMA*

Roger Cardinal, um dos mais conceituados estudiosos do expressionismo nas artes o descreve sinteticamente como um encontro da criatividade do artista com os seus impulsos emocionais e instintivos mais profundos. A expressão da obra adquire então um caráter subjetivo, pois a forma artística resulta das angústias humanas do indivíduo criador (1).

Enquanto no final do Século XIX os grandes impérios nacionais exibiam seus poderios, em paralelo, ideias contrárias eram desenvolvidas a contrapelo e serviam de perfeita antítese filosófica. Autores como Charles Badeulaire, com suas Flores do mal, e Friedrich Nietzsche, com seu ensaio irracionalista Assim falou Zaratustra, estremeciam a pseudo harmonia imperialista.

Já no início do Século XX, o mundo assombrou-se com as obras de Freud, seus estudos complexos sobre a libidinosa psique humana; e mais adiante Franz Kafka, já em 1915, investe nos processos de aprisionamento humano, como o sinistro e metafórico homem-inseto de "A Metamorfose".

Essa atmosfera cultural permeia e cria o estofo necessário para o desenvolvimento do expressionismo na Alemanha. No plano político a República de Weimar rapidamente frustra as esperanças de transformação social mais profunda, após massacrar o movimento revolucionário liderado por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht e se tornará um estorvo às mente mais críticas desse conturbado contexto histórico. O clima que permeava esse contexto está exemplarmente contido em "M, o vampiro de Dusseldorf" (1931), de Fritz Lang. 


PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX: UM CONTEXTO VIOLENTO E CONTURBADO 

Segundo o consagrado historiador Eric Hobsbawn, o século XX foi marcado por posições políticas extremadas, e foi em síntese, breve e intolerante. Diz ainda que o primeiro acontecimento marcante do século foi a Primeira Guerra Mundial, “que assinalou o colapso da civilização (ocidental) do século XIX”. (2)

As referências ao nazi-fascismo e ao comunismo estão implícitas no seu texto. Essas são as respostas extremadas ao fracasso do liberalismo econômico, que travestia a ocupação imperialista das grandes potências mundiais nos países e territórios mais pobres, mas ricos em matéria-prima para abastecer o crescimento e o avanço dos poderosos países europeus e o nascente, mas próspero, Estados Unidos da América.

Mas a década de 20 marcou antes de tudo o ápice do modelo liberal, da ilusão de prosperidade econômica, do auge da produção graças ao avanço de novas tecnologias. Os países vencedores da Primeira Guerra Mundial impuseram acordos humilhantes às potências derrotadas, tal como a Alemanha e a Itália. A decrepitude moral torna-se parte da vida cultural desses países, um sentimento de inferioridade contamina a sociedade. O expressionismo no cinema muito expressará o horror psicológico desse momento que antecederá a escalada nazista na Alemanha, mais não pode ser reduzido a apenas isso.

Em momentos de crise e abalo social é comum vermos as artes se colocarem de forma mais contundente, se interpondo como elemento crítico e participativo. Mesmo não sendo o expressionismo cinematográfico explicitamente contra o sistema político vigente, ele conseguiu criar uma atmosfera em seus filmes que hoje muito diz sobre aquele universo alemão dos anos 1920, e essa beleza da arte não se pode nem deve tirar dela, uma capacidade de se imiscuir à vida e lançar sobre ela um olhar, que corresponde a um poder de humanizar o mundo, mesmo quando seja para mostrar dele um lado desumano ou cruel.

Há no ato de escolha do artista pela arte uma inegável entrega à humanidade. As carreiras artísticas não eram vistas com bons olhos, a arte era considerada pelas elites algo menor, profissão de vagabundos e aventureiros. (3) Por exemplo, não havia ainda uma indústria do cinema tal como conhecemos hoje, estruturada, reconhecida e respeitada. A própria Hollywood, meca do cinema mundial, não possuía o status que goza hoje. Só a partir dos anos 30 atingirá posição como poderosa indústria voltada ao entretenimento.

A segunda metade do Século XIX foi marcada por uma forte industrialização dos países europeus, sobretudo Inglaterra, e Estados Unidos, período conhecido por Segunda Revolução Industrial, a era do aço, do telégrafo, do trem e do motor à explosão, transformações que também alavancariam a criação de parafernálias a serem utilizadas nas artes, como o próprio cinematógrafo.

A luta que se engendrou então foi a da busca por matéria prima e mercados entre as maiores potências. Alemanha e a Itália se unificaram tardiamente, mas também se lançaram nessa briga. O resultado desse acirramento foi a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1919) por sua vez foi um acontecimento que ressignificou à fórceps, a vida dos habitantes do planeta, e o cinema, assim como as artes em geral, também foi profundamente abalada. Nunca a destruição havia sido tão fácil, a morte não mais era perpetrada no corpo a corpo, já que uma nova forma de se fazer guerra se impôs, podia a partir de então se matar um adversário sem tocar diretamente em seu corpo, a metralhadora dava um toque de impessoalidade, feria-se sem ver o semblante do outro. Agora, com um simples apertar de gatilho eliminava-se dezenas e até centenas de pessoas em uma pequena fração de tempo. Entender esse impacto nas relação entre os homens é fundamental para melhor entender essa época.      

O CINEMA NO MUNDO ANTES DO EXPRESSIONISMO ALEMÃO

 Em 1919, O gabinete do Dr. Caligari demonstrou que o cinema atingiu uma maturidade artística importante. É um filme inaugural nesse sentido, que demarca um momento de clivagem. Existe o cinema antes e o cinema depois de Caligari. O cinema alemão dá um passo estético irrevogável ao adentrar nos meandros da psicologia humana, ao mostrar que as histórias poderiam ir para além do narrar, abriam janelas para se perscrutar tanto a interioridade dos pensamentos quanto do próprio agir humano. O expressionismo alemão contribui de uma só vez tanto como fenômeno estético quanto como revelador da alma. Daí a necessidade de pincelarmos rapidamente sobre o cinema da década de 1910 do século XX. 

Nessa época, o norte-americano de David W. Griffith evidenciou ao mundo as possibilidades de sistematização do aparato cinematográfico, de que por meio de aproximações da câmera em objetos e pessoas em um momento determinado podia exprimir ideias e emoções, por exemplo, acentuar o caráter dramático de uma cena, contando ainda com os recursos da montagem que o novo aparato cinematográfico então oferecia.

Mas o passo de Griffith representa um pouco mais do que isso, pois se consolida no cinema nascente a noção de significado (ao reafirmar a capacidade de narratividade), e vai mais além, ao imbuí-lo de uma faceta significante, isto é, de deixar clara a importância também do como narrar uma história. Assim, Griffith demonstra de uma só vez que o cinema podia não só contar uma história, mas também se constituir como uma linguagem específica.

Realmente é surpreendente que em menos de vinte anos da invenção do aparato Griffith alcance feitos tão extraordinários. Como Griffith era um homem vindo do teatro, o que mais o impulsionava era fazer do cinematógrafo um veículo viável para se contar uma história. Nasciam assim as bases para o que mais tarde viria a se chamar de narrativa clássica do cinema, que nada mais é do que uma sistematização de ideias, de organizar o filme em partes (planos, cenas e sequências) por meio de uma decupagem onde o diretor sinaliza quais planos utilizará, e em qual ordem os planos serão filmados e montados posteriormente. Com ele, se instaura uma visão fordiana de linha de montagem no cinema. O cinema então passa a ser entendido como um produto, pronto a ser inserido na engrenagem do mercado.   

Assim o cinema chega à década de 1920, carregado de conquistas no plano da narrativa e de mercado. Já podia então dizer que se esboçava um caminho possível, inclusive como uma incipiente indústria com algumas ambições comerciais, capaz de entreter plateias com histórias.   

ATINGINDO O CÉU: O CINEMA EXPRESSIONISTA ALEMÃO NO CONTEXTO ARTÍSTICO DA DÉCADA DE 20

O expressionismo no cinema situa-se em um contexto da história em uma encruzilhada, caminhos artísticos os mais diversos estavam sendo experimentados, e talvez ele representasse, devido à própria situação da Alemanha nos anos 1920, não exatamente uma síntese estética, mas muito mais uma síntese da indefinição de rumos, da dúvida que pairava nesse momento acerca de que qual seria a serventia do cinema para a humanidade.

Eis as algumas dúvidas inerentes ao cinema nas duas primeiras décadas do século XX:

- seria o cinema uma linguagem específica, munido de códigos próprios, interesses estéticos definidos, voltada sobremaneira para o despertar de sensações profundas e inovadoras nos seres humanos?

- seria o cinema uma mera extensão da narrativa literária e/ou teatral?

- seria o cinema tão somente uma poderosa arma ideológica à mercê de governos prontos a aparelha-lo de acordo com seus interesses de manutenção e propaganda para perpetuação de um determinado grupo ou classe no poder, tal como nos anos 30 viria apontar Walter Benjamin? 

- seria o cinema apenas mais um bem de consumo escapista a entreter as massas em seus momentos de lazer?

- seria o cinema um bem cultural a serviço de mensagens “educadoras” para as massas, portanto repleta de conteúdos instrutivos e de acordo com a moral e o status quo vigente, e que em consequência deveria ser monitorado pelo poder estabelecido?

- seria o cinema uma arte possível de ser industrializada e posteriormente comercializada, e como qualquer produto ser submetida ao consumo em geral?

Nota-se que essas perguntas são amplas e atendem demandas das mais variadas, que implicam questões específicas relacionadas à estética, à própria definição e estatuto artístico do cinema, mas envolve ainda questões que o imbricam com discussões para além do próprio cinema. Nota-se, nesse momento, o quanto o cinema será amarrado a uma gama de interesses sociais, políticos e econômicos que na década de 30 estarão mais evidentes: a consolidação da indústria de Hollywood e a interferência moral do estado nos enredos dos filmes; o uso do cinema pelo Terceiro Reich; o papel educativo dado pelo governo inglês; e político-partidário dado pelo governo soviético serão algumas respostas a algumas perguntas listadas acima.

Não é por acaso que os anos 1920 serão férteis para as vanguardas no cinema. Muitas discussões e manifestos envolvendo o cinema permeiam a época. Entre eles, o Manifesto das Sete Artes, de Ricciotto Canudo (escrito em 1911, mas publicado apenas em 1923); o Manifesto Surrealista (1924), de André Breton; o Manifesto do Som (1928), de Sergei Eisenstein; fora os diversos manifestos escritos por Dziga Vertov.

Em poucas linhas podemos afirmar que o cinema nos anos 20 podia tudo. Essa era a realidade, a perspectiva voltada para o entretenimento e para o viés comercial do aparato estava longe de ser o único caminho para o cinema, ele demonstrava por meio de seus artistas que seu alcance estético era ilimitado e tão amplo quanto o céu.

A RELAÇÃO DO FANTÁSTICO COM O EXPRESSIONISMO

De acordo com o crítico literário Tzvetan Todorov o fantástico pode ser entendido como tal quando se põe em dúvida a noção de real de um determinado fenômeno, isto é, quando não se consegue explicá-lo pela lógica, mas somente sob a regência de outras leis que desconhecemos. Para Todorov, normalmente um fenômeno “se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico.” (4)

O fantástico nasce na literatura e tem o cultuado escritor Edgar Allan Poe como seu autor ícone, mas a sua concepção é muito bem assimilada pelo cinema ainda em seus primórdios. O ilusionista e cineasta francês Georges Méliès é considerado um dos precursores do cinema fantástico, com o célebre filme Viagem à Lua (1902), quando o cinematógrafo ainda era mais uma curiosidade do que um aparelho apto a criar uma linguagem autônoma.

Mas é no cinema alemão que o fantástico surge com maior vigor, antes mesmo da eclosão do expressionismo alemão, já nos anos 1910 do século XX, com a incorporação de escritores do gênero fantástico como roteirista de filmes. Mas somente no final da década de 1910 e início dos anos 1920 que o fantástico atinge no cinema uma força incontestável, com o sucesso do filme de Robert Wiene, O gabinete do Dr. Caligari.

Em Caligari vem à tona um determinado potencial expressionista que revelava uma Alemanha gótica, demoníaca, com pesadelos obscuros. O mais incrível no filme de Wiene é a capacidade de tornar o gênero fantástico, até então essencialmente literário, totalmente palpável para o gênero cinematográfico. O viés fantástico em Caligari se impõe por meio da criação de uma temática típica dos enredos de terror, em especial o tema da manipulação de mentes e do sonambulismo.  

Desde os primórdios do cinema tem-se registro de filmes de horror. No primeiro ano do cinematógrafo, em 1896, Georges Méliès realizou um pequeno curta-metragem com a temática. As histórias de horror foram sendo filmadas nas décadas posteriores, mas somente no Expressionismo Alemão o horror adquiriu uma maior presença e vigor. O golem, O gabinete do Dr. Caligari, Nosferatu, Fantasma, e outros serviram de fonte para diversos filmes a partir dos anos 1930.

Mas se analisarmos a incorporação do horror ao gênero cinematográfico veremos que um ponto de partida onde o encontramos de maneira mais sistematizada é a do próprio Expressionismo Alemão. No Expressionismo encontramos uma exacerbação dos elementos imagéticos, mas eles representavam uma exteriorização de um estado interior, uma materialização espiritual, e a sua potência estética vinha dessa confrontação do externo com o interno. O que caracterizaria então o terror expressionista seria a assimilação expressiva de um elemento psicológico.

O período histórico do nascimento do Expressionismo o localiza imediatamente após a derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial (1914-1919), O gabinete do Dr. Caligari, foi produzido em 1919/20. Muitos críticos relacionam o Expressionismo como uma resposta da vanguarda alemã à atmosfera de decadência e crise moral do período compreendido como a República de Weimar (1919-33) e prenunciador do surgimento do nazismo. Hoje essa ideia não deve ser tomada de forma absoluta, outras questões são também apontadas como influentes, tal como o gosto pelo medievalismo (gótico) e a tradição romântica alemã.       

Como bem assinala a professora e pesquisadora Laura Cánepa um grande êxodo de artistas, atores e técnicos alemães dessa época, provocado pela ascensão do nazismo, difundiram uma considerável influência da "estética expressionista” pelo mundo, mais precisamente nos Estados Unidos, onde a indústria hollywoodiana avançava a passos largos. Basta assistir aos filmes de horror dos anos 1930, e os chamados filme noir, para saber que não estamos a exagerar. (5)           

O CINEMA EXPRESSIONISTA ALEMÃO - ASPECTOS ESTÉTICOS GERAIS

Acredita-se aqui que sem essa contextualização bastante abrangente, uma análise sobre qualquer cinema realizado na década de 1920 seria estéril e inócua. Isso se deve à grande efervescência das artes desde o final do século XIX, e em especial a partir dos anos 1910 do século XX, com as interferências modernas, mais precisamente a polêmica causada pela ousada obra de Duchamp, intitulada de A fonte. Depois de quase cem anos, ainda hoje essa obra suscita fervorosas discussões acerca do que seria então a arte, ou um objeto artístico e quais seriam os parâmetros e critérios para a sua definição.

Mas sem dúvida a Primeira Guerra Mundial tem um peso incomensurável desse contexto. Fez renascer elementos alguns até já adormecidos na alma alemã. No início do magnífico livro sobre o expressionismo alemão, Lotte H. Eisner afirma:

"Misticismo e magia - forças obscuras às quais, desde sempre, os alemães se abandonaram com satisfação - tinham florescido em face da morte nos campos de batalha. As hecatombes de jovens precocemente ceifados pareciam alimentar a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantasmas, que antes tinham povoado o romantismo alemão, se reanimavam tal como as sombras do Hades ao beberem sangue." (6)   

Então vejamos, misticismo, fantasmas, sobrevivência, sangue, morte, hecatombes de jovens e sombras são palavras utilizadas nessa pequena citação, mas que corporificam o sentimento expressionista. Os filmes trazem inequivocamente esse peso, como um carma que recai sobre seu destino artístico.  

Na definição de Roger Cardinal o expressionismo “representa uma versão peculiarmente urgente da necessidade perene do artista de se expressar sem restrições. Seus antecedentes imediatos são as declarações irracionalistas e instintuais de um Nietzsche, as transcrições poderosas da vida íntima agitada nas últimas pinturas de Van Gogh, os gestos altamente cênicos de Strindberg. Quando Nietzsche afirma orgulhosamente que ‘eu sempre escrevi meus trabalhos com todo o meu corpo e minha vida, não sei o que querem dizer com problemas intelectuais’, está oferecendo, na sua maneira mais simples, um princípio exemplar do Expressionismo: a confiança irrestrita na expressão direta dos sentimentos que se originam na própria vida do criador, sem a mediação e a interferência provável da racionalidade”. (7)

Quando o mundo objetivo não inspira confiança, o artista se utiliza da subjetividade, de sua expressão mais soturna, avisa ao mundo que o tempo está nublado, que as sombras e os personagens sinistros estão em profusão e que algo precisa ser feito para transformar a sociedade, antes que precisemos lhe extrair um membro.

Os filmes do período comumente chamado de expressionista (1919-27) espelham demais a nebulosidade de seu tempo. Há um cruzamento considerável, em especial na Alemanha derrotada no pós-guerra, entre realidade sinistra e visão sinistra do artista. A distorção aflorada no olhar do artista não deve ser descartada e mais do que isso, deve ser sublinhada, enfatizada, pois é difícil viver uma hecatombe social e não expressá-la. Seria como não pertencer ao mundo, abdicar dele.

Pensemos então em um ponto crucial para o expressionismo: a distorção. Como falar de temas sublimes quando o que vemos ao redor não é tão inspirador assim. A guerra distorceu os corpos. Os artistas viram isso, não podiam passar incólumes a tudo isso. Mas também tem a degradação moral quando a morte e a mutilação dos corpos passam a existir em profusão, os jovens são abatidos e com eles o futuro de um país. Ainda há a alteração da paisagem, a destruição de aldeias, cidades, a improdutividade do campo.

Os cenários dos filmes expressionistas, em especial as obras de primeira hora, tal como O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete das figuras de cera, O golem, Nosferatu, tendem à claustrofobia, lhes faltam profundidade, são acachapantes e tortuosos, possuem uma estilização artificial que beira ao grotesco.

A maquiagem dos atores foi concebida de forma exagerada, sinistra, que lhes fazem parecer uns mortos vivos, como se vagassem à deriva pelo mundo. Seus corpos são pesados, com movimentos bruscos, não naturalizados, como se fossem impedidos de se locomover com desenvoltura por uma força maior. Os figurinos também lhes pesam, dificultam o movimento e lhes dão uma aparência soturna.

Nosferatu e Orlac, por exemplo, são quase que personagens de outro mundo, cindidos e alheios à vida social, imersos no seu mundo, pouco dialogam com o exterior, vivem tragédias interiores, são seres alienados, quase inumanos. Não à toa os temas mórbidos perpassam os filmes expressionistas, pois são comumente seres que habitam um terreno sombrio da existência. Há uma concepção labiríntica dos cenários que muito expressam uma vertigem inerente também aos conflitos emocionais dos personagens.   

A imagem expressionista também dialoga com os personagens e com os cenários com a predominância do contraste entre partes muito escuras (mais nas bordas) e muito claras (no centro da imagem). Há ainda o resgate do medievalismo, uma aproximação com a estética gótica, assim como uma recuperação dos valores românticos nítidos na exacerbação dos sentimentos dos personagens.                   

Um dos alicerces que colaborou para escorar o cinema alemão dos anos 20 foi o teatro de Max Reinhardt, escola para diversos profissionais que depois migraram para o cinema, e foram muitos: cenógrafos, atores, diretores, figurinistas, fotógrafos, vários deles saíram de seu teatro. Se o teatro formou profissionais, a UFA (Universum Film Aktiengesellschaft), como produtora privada, fortemente assentada economicamente, composta por fusão de diversas produtoras, solidificou o cinema alemão como produto fora do país, mercado esse que antes encontrava-se em crise. A adesão da Decla Biocosp, empresa de Erich Pommer, maior produtor alemão, foi decisivo para a UFA alçar voos extraordinários.       

Em consequência, o cinema expressionista alçará diretores para fora da Alemanha. Todos hoje são nomes cultuados. Qual amante do cinema nunca ouviu falar de um Fritz Lang, de um Murnau, de um Paul Leni, de um Ernst Lubitsch, de um Pabst e de um Robert Wiene? 

Ressalta-se ainda a qualidade técnica dos profissionais de cinema existente na Alemanha dos anos 1920. Do roteiro ao acabamento das imagens o expressionismo foi pródigo de artistas. Destacam-se como roteiristas Carl Mayer (A última gargalhada e O gabinete do Dr. Caligari), Henrik Galeen (O gabinete das figuras de cera, O golem e Nosferatu) e Thea von Harbou (Metrópolis); como diretores de arte há nomes como Robert Herlth e Walter Rohrig (Fausto e A última gargalhada), Walter Reiman e Hermann Warm (O gabinete do Dr. Caligari); como fotógrafos e câmeras nomes como Fritz Arno Wagner (Nosferatu), Carl Hoffman (Fausto) e o magistral Karl Freund (A última gargalhada, Metrópolis, O  gabinete do Dr. Caligari e O golem). Pode-se ainda citar os excepcionais atores Conrad Veidt (O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete das figuras de cera, O homem que ri, As mãos de Orlac), Emil Jannings (A última Gargalhada, Fausto e O gabinete das figuras de cera), Werner Krauss (O gabinete das figuras de cera e O gabinete do Dr. Caligari) e Wilhelm Dieterle (Fausto e O gabinete das figuras de cera ).

Soma-se a esses preciosos profissionais um organizador de peso, o já citado produtor Erich Pommer, que comandou os maiores orçamentos da época, e trabalhou com os diretores e técnicos dos mais significativos da indústria cinematográfica alemã à época da República de Weimar, entre eles, Murnau, Wiene, Lang, Freund, Hoffman e Mayer.

Vários desses artistas tiveram passagem por Hollywood, em especial no período do nazismo em que o controle ideológico dos filmes alemães passava pelo crivo do regime totalitário comandado por Hitler e Goebbels. A roteirista Thea Von Harbou não acompanhou o seu marido, o diretor Fritz Lang, escolheu colaborar na aventura duvidosa de fazer um cinema nazista. 

NOTAS:

1. CARDINAL, Roger. O Expressionismo. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1988.

2. HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX - 1914-1991. São Paulo. Cia. das Letras. 1997. p. 16.

3. VON ECKARDT, Wolf e GILMAN, Sander L.. A Berlim de Bertolt Brecht: um álbum dos anos 20. Rio de Janeiro. José Olympio Editora. 1996.

4. TODOROV, Tzvetan. Introdução a literatura fantástica. São Paulo. Perspectiva. 2008. p. 31.      

5. CÁNEPA, Laura Loguercio. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do Cinema Mundial. São Paulo. Papirus. 2008.

6. EISNER, Lotte H.. A Tela Demoníaca. São Paulo. Paz & Terra. 2002. p. 17

7. CARDINAL, Roger. O Expressionismo. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1998. p.25

* texto escrito para a mostra "Sombras que assombram", dedicada ao cinema expressionista alemão dos anos 1920.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras difere