O Homem que ri e a monstruosidade do outro
Por Marco Fialho
Apesar de O homem que ri ter sido produzido nos EUA, pela Universal Studios, em 1928, o filme conserva ainda traços característicos do expressionismo alemão. Seu diretor, o talentoso cenógrafo Paul Leni, já havia realizado na Alemanha o clássico O gabinete das figuras de cera, e viria a falecer um ano depois de realizar essa madura obra de arte chamada O homem que ri.
O lastro expressionista já acontece na própria escolha da temática, a de um homem com deformação no rosto. Apesar de não ser um filme de terror, o filme trata em especial da criação de um monstro. O mais impressionante no filme é o fato da monstruosidade não ser do monstro, mas sim de quem o deformou. Durante o filme esse personagem luta contra a própria imagem, pois um homem possuir uma aparência de estar rindo o tempo todo é inevitavelmente trágico.
O filme baseia-se na obra homônima do escritor romântico francês Victor Hugo. A escolha de Leni por filmar essa história de traços humanistas profundos muito revela sobre a atração que sentia pelos personagens marginalizados, transformados brutalmente em monstros e tratados como se fossem restolhos pelo poder estabelecido.
A atuação de Conrad Veidt no papel desse bizarro protagonista é um dos trabalhos mais marcantes. Cabe mencionar que a caracterização impressionou de tal forma o universo artístico que é impossível não lembrar da visível influência dele na construção estética da maquiagem do personagem Coringa, vivido por Jack Nicholson, 70 anos depois, no filme Batman, dirigido por Tim Burton.
Bem afeito ao estilo expressionista, o personagem deformado pelo riso, vivido por Veidt, é acolhido por um filósofo e torna-se um artista mambembe. Aqui, o espaço da feira continua a seduzir os cineastas alemães dos anos 20, e mais uma vez o terror transformado tanto em espetáculo quanto em uma forma de sobrevivência. O ambiente de feira novamente evoca o caos e simboliza a desorganização social. Leni faz uso de câmeras em movimento, cenas com muitos figurantes e cortadas muito rapidamente, para evidenciar uma atmosfera confusa, enfim, um grande circo de horrores.
Como grande cenógrafo que era Paul Leni, aluno do mestre da cenografia Max Reinhardt, abusa na construção dos cenários artificiais primorosos, possuidores de beleza sim, apesar de não abrir mão dos aspectos mais sinistros, típicos da concepção expressionista, mas dispensando o exagero estilístico marcadamente caligarista.
Não podemos esquecer que Leni está filmando em um estúdio de Hollywood e que por isso há uma preocupação de se ter um resultado o mais realista possível na produção das imagens. Na equipe técnica do filme encontravam-se diversos profissionais norte-americanos.
O saldo final é bem interessante, há uma visível e bem resolvida isometria estilística entre o realismo norte-americano e o expressionismo alemão. A cena final, por exemplo, está repleta de cenas típicas do cinema de aventura de Hollywood, mas os cenários e a interpretações dos atores não omitem sua genética expressionista. Além dessa obra, pode ser mencionado como outro exemplo bem-sucedido dessa mistura estilística o filme Aurora (1927), de F. W. Murnau.
Paul Leni dirige os atores com métodos nitidamente calcados no expressionismo. Atuações gestuais exageradas e movimentos bruscos dos atores, rostos comunicativos com olhos esbugalhados cheios de angústia permeiam o filme.
Uma das características mais evidentes em O homem que ri é a do contraste entre a aparência e a essência. O personagem de Conrad Veidt tem essência bondosa que não coincide com a aparência monstruosa. Outra dicotomia construída por Paul Leni foi estabelecida entre o clima de agitação da rua e a monotonia da corte. Enquanto na feira imperava a desordem, do outro lado, dentro do palácio da rainha, predominava uma música de câmara sonolenta.
Em O homem que ri essas dicotomias são constantes, os animais assumem características mais humanas, enquanto os homens tomam atitudes mais animalescas. O nome do cachorro é Homo, a duquesa mais parece uma vampira à espreita de sangue, o filósofo tem o curioso nome de Ursus. Para o espectador tudo soa muito estranho, em especial essas inusitadas inversões que ocorrem sistematicamente no filme.
Veidt sobressai mais uma vez com seu talento para a arte da representação e tal como fez em As mãos de Orlac e O gabinete do Dr. Caligari dá ao personagem um magnetismo surpreendente.
Ao final, como na maioria dos filmes expressionistas, o bem supera o mal, como se a ficção tivesse a missão redentora de salvar um mundo que se encontra em frangalhos, e Paul Leni não abre mão desse poderoso recurso dramatúrgico, de colocar a plateia a seu favor. Recentemente, em 2012, se filmou uma releitura francesa dessa obra. Se comparadas, a versão de Paul Leni sobra, tal o seu vigor artístico que resistiu bravamente ao tempo.
* texto escrito em 2013, para a mostra "Sombras que assombram", dedicada ao expressionismo alemão no cinema.
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