Murnau e o flerte com o romantismo alemão
Por Marco Fialho*
Se Fausto for comparado à A última gargalhada, Nosferatu e Aurora, três outras obras de Murnau, sua potência estética pode ficar abalada. Definitivamente, Fausto não é a obra-prima desse cineasta fantástico que morreu prematuramente aos 42 anos de idade, mas configura-se como característica do cinema alemão dos anos 20 e da sua estética expressionista e situa-se muito acima de tantas obras realizadas na época.
Na história do filme, Fausto é um velho cientista seduzido pelo demônio, Mefistófeles, interpretado com a competência de sempre por Emil Jannings. Primeiro o cientista obtém poderes para curar a peste, mas como seus poderes vinham das forças obscuras, ele não conseguia curar perante a imagem da cruz e logo o povo o vê como encarnação do diabo e o rechaça. Depois Fausto é seduzido para ter de volta a juventude e o diabo lhe apresenta a imagem de uma linda princesa e promete intervir para fazê-la ficar apaixonada por ele. Depois de experimentar novamente a juventude Fausto não quer mais voltar a ser um velho e faz um pacto eterno. Entediado, Fausto pede ao diabo para voltar à aldeia quando se apaixona pela bela Gretchen. Ao se apaixonar por ela, Fausto perde o controle dos seus sentimentos mata o irmão da amada e é obrigado a fugir a deixando grávida e desonrada em sua cidade. Toda essa tragédia foi arquitetada pelo diabo. O diabo acaba morto com a intervenção divina ao proferir apenas a palavra amor.
Como em todo filme alemão dos anos 20, o bem triunfa sobre o mal. Não se trata necessariamente da vitória do mocinho, tal como o personifica o cinema de Hollywood, mas sim um sucesso do ideal sobre as pessoas. Essa distinção é fundamental, porque não existe no cinema alemão a imagem do mocinho redentor que personifica o bem, crucial é que o bem supere o mal e ponto final, trata-se da supremacia do bem coletivo sobre o indivíduo.
Esse tema do endemoniamento é mais uma vez encarnado nos filmes alemães dos anos 20. A atmosfera fantástica também domina essas histórias, inclusive com a personificação humana do diabo salientando-se seu aspecto mágico. Se pensarmos no filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman, podemos enxergar nítidas marcas da estética de Fausto, em especial a construção da imagem do inferno na terra e a opção em situar a história na Idade Medieval, mas evidente Bergman, produzindo sua obra trinta anos depois aprofundou o tema da contradição inerente à ideia de deus e do diabo.
Apesar de Murnau não flertar com a estética caligarista em Fausto, observa-se ainda sim uma preservação do artificialismo da imagem. Surpreendentemente esse filme se desenvolve como uma fantasia, um delírio, e se afasta da narrativa realista de A última gargalhada, mas aproxima-se da tragédia. Essa tragédia, em parte, está explicitada na narrativa, mise-en-scène e interpretação dos atores, mais exagerada nesse Fausto do que em outras obras de Murnau. Os traços medievalistas, tão típicos das obras expressionistas encontra eco também nesse filme, no decór, nos figurinos e na temática do diabo influindo na vida humana.
A fotografia de Carl Hoffmann se sustenta pelo excesso de preto e a atmosfera dos ambientes é sempre sinistra. O desequilíbrio do preto é fundamental nessa obra, ele ajuda a direcionar o olhar do espectador para elementos de cena e personagens com os tons de cinza e branco. Claro que o predomínio do preto tanto nos diz sobre o domínio do diabo em nosso mundo terrestre, que impede uma nítida visão do todo. O cenário de Walter Rohrig e Robert Herlth também colabora para formar uma identidade imagética, o quarto do velho cientista Fausto é entulhado de livros, não conseguimos distinguir com clareza o espaço, que apenas nos vislumbra como soturno e infeliz.
Já a ideia do Kammerspiel implementada em A última gargalhada por Murnau dois anos antes não foi levada em consideração na realização de Fausto. Há muita utilização de diálogos por meio dos intertítulos e a câmera também não se movimenta tanto, apenas em poucas cenas. O realismo também é abandonado, o universo fantasioso e fantástico predomina sobremaneira.
Em Fausto nota-se a influência do romantismo alemão do século XIX, a começar pela escolha de Murnau de realizar uma adaptação da obra mais célebre de Göethe, autor-ícone do romantismo alemão. Essa herança do romantismo no expressionismo se faz presente não só fisicamente na produção das imagens, mas também o é na esfera do espiritual, incrustado e firme tal como a marca inconteste de um carimbo.
O tal espírito romântico mencionado pode ser definido genericamente pelo termo "a dor no mundo", que se expressa no indivíduo, que carrega em si a primazia da subjetividade sobre a objetividade. A expressão do indivíduo e sua forma de expressá-la assume uma relevância, assim como a passionalidade e a exaltação do sentimento. Há uma busca por imagens do passado que manifestem as angústias sentidas no presente.
Murnau imprime em seu Fausto algumas imagens impressionantes. Trabalha muito com a superposição de imagens, técnica muita utilizada por ele em outros filmes e que cria no espectador um clima vertiginoso, como se uma imagem só não bastasse, e outras clamassem por estar ali. Efeitos de ventos e de seres voadores fantásticos também abundam no filme.
Tal como um típico filme expressionista ele explora cenários construídos, artificiais. Até a natureza é concebida de forma ornamental e reforça o artificialismo de Fausto. Tudo, incluindo também o inferno, surge na tela como um ambiente que suscita um estranhamento. A imagem final que fica de Fausto, a de uma experiência sensorial, mítica, irreal e delirante.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!