Por Marco Fialho
Ao assistirmos As mãos de Orlac temos a prova de que Robert Wiene não foi um diretor de apenas uma obra, a icônica O gabinete do Dr. Caligari, como muitos críticos defendem. O filme carrega uma força e uma beleza que não foram apagadas pelo tempo. Inserir o filme em uma mostra sobre o expressionismo alemão dos anos 20 serve para fazer justiça tanto ao autor quanto à obra em si.
O filme marca o reencontro da dupla Wiene/Veidt, diretor e ator de O gabinete do Dr. Caligari. Trata-se de um filme deslumbrante, impregnado em vários aspectos da estética expressionista. Nele, Wiene reafirma seu talento para o cinema fantástico, tomado pela inquietação e a assombração humana.
Wiene narra no filme a história de um pianista apaixonado pela esposa que perde as mãos em um acidente e aceita participar de uma experiência de transplante de mão, e poder assim retornar sua vitoriosa carreira como concertista. Tudo transcorre bem até quando ele descobre que as mãos transplantadas eram de um assassino. O pianista fica então transtornado e passa a acreditar que está tendo os mesmos impulsos do antigo dono das mãos.
Quanto mais o personagem mergulha em dúvidas mais o universo expressionista se manifesta com o uso de sombras e elementos obscuros que se tornam latentes na tessitura do filme. Apesar de resgatar o clima de terror de seu filme mais exemplar e conhecido, Wiene se inspira muito mais em Nosferatu, de F. W. Murnau, em especial na atmosfera gótica e na imagética predominantemente tomada pelas sombras.
O terror aqui está presente, mais no aspecto psicológico do personagem Orlac, de ordem mais subjetiva e centrado no caos em que se transforma a mente de Orlac. Desde que é internado no hospital ele tem visões do assassino que surge envolto em nuvens, daí vem o assombro, o tormento psicológico do personagem que nessas visões nebulosas acredita estar cometendo assassinatos apenas por ter adquirido as mãos de um assassino.
A perturbação do personagem transforma-se na maior protagonista do filme, mas assim como em Caligari, ocorre uma manipulação descoberta no final, quando vem à tona que o assassino estava vivo e que as mãos transplantadas eram de uma pessoa com um caráter íntegro. O absurdo e o improvável da ideia de crise de identidade a partir do transplante de uma mão, não tira o brilho do filme, talvez dê a ele um certo toque de humor, quando visto pelos olhos de espectadores depois de transcorridos cem anos da realização da obra.
É visível, nas interpretações dos atores, a forte influência do estilo expressionista na maneira de se atuar. Por exemplo, no exagero nas reações e gestos, e como não lembrar a cena da esposa ao saber da perda da mão do marido. O movimento acentuado dos corpos também pode ser lembrado, já que eles verdadeiramente falam nas obras expressionistas e Conrad Veidt é um dos grandes mestres nessa arte de representar com o corpo. Dentre diversas cenas, destaca-se a que ele acorda no hospital com um bilhete no colo denunciando que suas mãos eram de um assassino que fora executado. Veidt interpreta com reações no rosto e no corpo inteiro, em um movimento de separar/isolar as mãos do restante do corpo. Só Veidt para dar tamanha significação a essa cena.
A partir desse momento inicia-se a exasperação do personagem, desnorteado e enojado com as próprias mãos. Como agora tocar no corpo amado da esposa e nos teclados do piano com aquelas mãos maculadas por diversos crimes e assassinatos. Orlac passa a minguar como sujeito e Wiene acentua o aspecto inferiorizado dele, contrastando o corpo frágil com um cenário amplo, com um pé-direito imenso, com pouco uso de mobília no ambiente, com iluminação no centro da cena e o predomínio das sombras pelos cantos. O que chama atenção positivamente é o cuidado da produção. Logo no início do filme a sequência do acidente do trem é muito bem construída. Destaca-se o ritmo criado pela montagem, com muitos cortes, cenas rápidas, uma mise-en-scène com muitos figurantes, uma filmagem realizada em um misto de estúdio e locação, algumas inclusive à noite, alguns ângulos surpreendentes, cenários com trens retorcidos muito bem realizados e fotografia impecável. Um desafio sem dúvida de se fazer com os meios disponíveis em 1924.
"As mãos de Orlac" é um típico filme do terror fantástico, sustentado por uma história improvável e irreal, ainda influenciado por uma estética expressionista, assim como o é no desenvolvimento de temas e na construção de personagens atormentados psicologicamente, sujeitos às visões assombrosas. Todavia, antes de tudo uma obra saborosíssima, fluente, bem filmada, coerente com seu autor e com uma atuação preciosa de Conrad Veidt. Um grande clássico do cinema que deve ser visto, discutido e muito respeitado pelo seu valor histórico e artístico.
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