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VÁ E VEJA - Direção Elem Klimov


Uma jornada no pesadelo

Por Marco Fialho

"Um ser humano tem dentro de si uma fera. Você enfrenta ela, e ela a você."
                                                                                                                
                   Dostoievski (frase dita pelo diretor Elem Klimov em um entrevista sobre o filme) 


Tem obras que não passam incólumes por nós. A elas não são permitidas a indiferença, tal a contundência com a qual nos atinge. São possuidoras de uma força intrínseca, incontrolável e mexem com nossas mais profundas entranhas. Nos obriga a uma ressignificação acerca da vida. Não só da nossa como também do mundo. Passado, presente e futuro são postos em xeque com um único golpe avassalador. Assim é "Vá e Veja" (1985), de Elem Klimov, um tiro certeiro bem no alvo da nossa consciência e psiquismo, um canhão a abrir um enorme rombo na indiferença que domina a vida contemporânea.      

A primeira cena de "Vá e Veja" pode até parecer sem sentido, mas trata-se da única que veremos o jovem Floria (Alexei Kravchenko) sorrindo espontaneamente como uma criança sempre deveria fazer. Não os risos de desespero que depois dará em outras sequências do filme. Longe de ser inocente, esse ato jocoso torna-se um prenúncio de uma tragédia anunciada. Estamos em 1943, na Bielorrússia, porta principal para a invasão e dominação nazista sobre o então território soviético, ação brutal que promoverá uma destruição raras vezes vistas na história da humanidade.         

"Vá e Veja" suscita reações contraditórias no espectador. Se por um lado a crueza e o horror das imagens o tornam um filme indigesto, por outro, emana dele uma poesia inspiradora e potente. Em síntese, o filme mistura um realismo rascante com um surrealismo lírico, sustentado por uma trilha musical sofisticada e uma câmera imersiva no ambiente retratado, o que nos arremessa à contragosto para um triste cenário de violência e incessante covardia. A atuação do jovem Alexei Kravchenko como Floria é crucial na construção cênica de Klimov. Os closes recorrentes em Floria são determinantes para o resultado dramático almejado. Cena a cena seu rosto vai envelhecendo. Se de início a face dele é de um jovem qualquer, ao final observamos o semblante transformado para o de um homem adulto, com rugas lacerantes vindas de um sofrimento profundo.
Ao longo do filme, vários personagens vão perpassando a trajetória de Floria. Uns morrem, outros se perdem dele, e ele próprio se perde da patrulha na qual estava inserido. Antes de tudo, o filme é uma experiência de desorientação. E ficamos perdidos tal como ele, abandonados a própria sorte, em um ambiente em que sobreviver já é uma dádiva e tanto. Somos colocados no mesmo patamar perceptivo de Floria, vivemos as mesmas angústias que ele. A sensação é da guerra esvaziando o sentido das relações humanas e o ato de sobreviver (um instinto animal) termina por se sobrepor a tudo, por isso corriqueiramente chamamos as guerras de desumanas, por nos lançar em um ambiente selvagem imbuídos de um só princípio: o de continuar vivo. O irracionalismo dá o tom de todas as ações humanas e a vida passa a ter pouco valor. O genocídio torna-se regra tanto do cotidiano da população quanto dos invasores nazistas. A primeira como vítima e os segundos como frios algozes sanguinários.    

Curioso reparar como entre 1985 e 1990, vários filmes foram realizados salientando o ponto de vista de uma criança durante uma guerra (a maioria na Segunda Guerra): "Esperança e glória" (1987), de John Boorman; "Império do sol" (1988), de Steven Spielberg; "Filhos da guerra" (1990), de Agnieszka Holland; "Adeus, meninos" (1987), de Louis Malle; "O último imperador" (1988), de Bernardo Bertolucci; "O túmulo dos vagalumes" (1988), de Isao Takahata. Claro, que esses são testemunhos de uma geração que viveu parte da infância na guerra e por intermédio do cinema puderam compartilhar suas dores e angústias de uma infância que lhes foi roubada.

Inclusive, "Vá e Veja" teve como base as experiências do roteirista Ales Adamovitch, que durante a segunda guerra foi mensageiro no front russo (não por acaso Floria tem a mesma idade dele à época). Mas essa não foi a única experiência incorporada ao filme, o próprio Klimov incorpora vivências dessa época, em que tinha 8 anos de idade. A obra tem uma forte tendência à tragédia, em reafirmá-la verdadeiramente como denúncia, mas foi muito agravada por uma fatalidade na vida de Klimov. Em 1979, Larisa Shepitko, esposa do diretor, e também cineasta, morre em um acidente junto com parte de uma equipe que estava realizando um outro filme (que foi concluído por próprio Klimov e lançado em 1983 com o título de "A despedida"). Essa morte inesperada impregnou a alma de Klimov, que ficou melancólico e amargo perante a vida. "Vá e Veja" carrega muito desse trauma e dor familiar.  
Apesar de toda a dureza advinda pela camada das imagens, a construção fílmica como um todo de Klimov destila uma visível dose de amor. O resultado desse amealhar de emoções fica registrado em diversas cenas e sequências que são permeadas de lirismo e beleza, como a do encontro misterioso de Floria e a jovem Glasha (Olga Mironova), onde predomina uma atmosfera típica dos filmes de horror e uma ambiência típica dos filmes surrealistas, onde fantasmas convivem com humanos em uma jornada de pesadelos sem fim. A beleza fantasmagórica de Glasha, com olhos carregados de um azul incomum de tão claro, chega a assustar, assim como sua ousadia erótica surpreende e impressiona Floria, que a afasta. As imagens deles na floresta é a última quimera, o último resquício e suspiro da infância de Floria. Depois que sai da floresta, Floria encerra o aspecto lúdico e irá conhecer intimamente o horror.

Como todo jovem que se preza Floria é desviado do caminho pelo encanto enigmático de Glasha, mas isso não evitará o pior. Vale lembrar que é bem no início desta sequência que o menino avista o primeiro sinal de morte, quando pisa em um ninho de pássaro e Klimov sublinha isso com um close macabro no feto morto. Talvez essa chegada de Floria na guerra contenha uma significativa carga simbólica. A perda da inocência pode até ser insinuado e iniciado no mundo animal, mas o final da sequência será mais reveladora ainda, quando ele descobrir que a família (mãe e irmãs) foi exterminada implacavelmente pelos alemães. Em mais uma sacada metafórica de Klimov, Floria termina a sequência chafurdado no lamaçal. Toda a concepção sonora desta sequência possui um cuidado especial, com contrastes muito bem alinhavados. Os sons minimalistas da floresta são interrompidos pelo som excessivo das bombas. É nesse momento que nos damos conta do quanto estamos atrelados à vivência de Floria. Sua surdez temporária devido ao estouro das bombas, também passa a ser nossa. A experiência de Floria e Glasha na floresta após o bombardeio é lúdica e nos remete ao Tarkovski de "A infância de Ivan" (1962), em especial pela ambiência sonora e a proposição de imagens oníricas. Talvez a imagem de Glasha possa ser comparada a de um anjo exterminador, a que anuncia a tragédia e a destruição que estão por vir. Tanto que ao chegar numa comunidade já desolada pela passagem dos nazistas, Glasha magicamente desaparece. 

Em "Vá e Veja" tudo se transforma permanentemente. O maior reduto da dor de Klimov estão nos diversos closes que ele faz de Floria. A cada imagem dessa entendemos o quanto de síntese o seu rosto carrega em si. Não é só o ambiente que se transforma em destruição, o rosto de Floria estampa a própria deterioração do ser humano, como se a alma aflorasse sem piedade a cada novo e insistente close. Ele representa o abandono de todos que estão suscetíveis a serem exterminados à mercê da vontade dos invasores nazistas. É como se todo um país se transformasse em um imenso campo de concentração. É como se um prédio de vários andares fosse diminuindo andar por andar, até se tornar tão somente uma ruína. É como se a vida de Floria fosse também esse prédio a ser destruído lentamente a cada nova experiência com a guerra.
Quando Floria adentra efetivamente na guerra, o filme vai se dividindo em blocos que poderiam até ser independentes entre si. Da mesma forma que os personagens entram, eles saem de cena e salientam o quanto o filme é regido pela ora pela ótica ora pela própria vivência de Floria. A sensação que temos é que a morte cena a cena vai assumindo o protagonismo do filme ao lado do menino. Quanto mais o fruímos o filme o horror vai tomando conta dos personagens. A violência se acumula, avoluma e ela é essencialmente humana, irracional. O genocídio dos bielorrussos vai tornando-se uma triste evidência. O realismo das cenas assume as formas mais irracionais de violência. Pessoas mortas aos montes, incineradas, fuziladas, mulheres estupradas quase até à morte. Como diz um oficial nazista capturado "crianças são piores que adultos. O seu país não deveria existir. Algumas nações não tem direito a um futuro". Claro que depois de tanto ódio algo de negativo precisaria acontecer. E a hora da vingança não é só a hora de dar o troco, mas de aflorar a consciência de que algo necessita ser feito para se conter os nazistas. 

O mais instigante em "Vá e Veja" é o quanto Klimov não perde de vista que o cinema por mais realista que precise ser, não pode abrir mão da camada simbólica, pois por meio dela se enxerga muito mais sobre tudo que nossas vistas alcançam e não captam verdadeiramente. O simbólico nos faz ir além dos fatos, do que é dito e mostrado. Por isso, a câmera oscila entre a reconstrução realista das cenas como elementos de caráter simbólicos relacionados à vida de Floria. Não é a guerra com seus soldados, é a guerra e as consequências emocionais dela em um menino cercado pelo horror e a violência imposta por esta realidade crua e cruel. É o inferno no meio da vida de um jovem ingênuo, que perde o direito a viver plenamente a infância.          

E assim Klimov entrega o seu final, como um exercício de regressão, de um documentário que vai se desmontando para se (re)construir o mundo físico sem as agruras do nazismo. A montagem sempre foi na cinematografia soviética um elemento crucial e aqui ela funciona como redefinidora da história humana. Por meio de uma montagem eisensteiniana, Klimov provoca o espectador mesclando imagens da ira de Floria à figura de um retrato de Hitler com imagens de arquivo da ascensão do regime nazista. Tese (tiro metafórico de Floria em Hitler) e antítese (imagens de arquivo rodadas inversamente de frente para trás), ambas expostas para a síntese do espectador. 

Por isso Hitler também é uma figura central para o filme e cada soviético sabe melhor do que ninguém sobre as consequências do personalismo e crueldade para a vida cotidiana. Como liberdade poética, Klimov reduz Hitler a uma simples imagem de uma criança no colo de sua mãe (imagem talvez inventada). Sim, o transforma em um indefeso menino, como todos os meninos são quando possuem menos de um ano de idade. Fica então no ar uma interrogação: alguém nasce monstro ou se transforma no decorrer de um processo histórico marcado por tantos fracassos e humilhações, tal como se deu na Alemanha no entre guerras? Todavia uma certeza fica marcada nos espectadores: a necessidade de enterrar as ideias fascistas custe o que custar, já que a violência e o ódio só trazem como consequência a morte e o extermínio. Um terço da população da Bielorrússia (mais de 2 milhões) foi morta nas mãos dos nazistas, e não eram soldados nem generais, eram apenas habitantes vivendo um dia a dia de sacrifícios. Como bem declarou Klimov: "'Vá e Veja' é um filme antifascista e contra a guerra". Mais sintético e direto impossível.       

Visto no Youtube, no dia 22/11/2020.   

Comentários

  1. Excelente análise. Vi ontem o filme. Impactante.

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  2. Que vontade de assistir! Já pelo texto, me emocionei. Parabéns!

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  3. Que vontade de assistir! Já pelo texto, me emocionei. Parabéns!

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  4. Obrigado querida! Saudades! Eu coloquei um link aberto do filme na minha página do Facebook.

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  5. Texto que encanta pela sensibilidade
    que perpassa, convidando a um olhar com cuidado, estimulado pela bela estética que nos vai mostrando as nuances e os contextos, nos leva a imaginar cenários, e as sensações, denotando, como em todos os outros escritos, muita dedicação pelo amor ao que faz

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    1. É gratificante e recompensador ouvir os impactos dos textos nos leitores. Agradeço muito a Ana Lúcia por sempre acompanhar com sua sensibilidade apurada meu trabalho.

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