Fukada e o cinema como percepção ilusória do mundo
Crítica por Marco Fialho
"O perfil de uma mulher" é um filme traiçoeiro. Tudo nele leva a enganos, interpretações precipitadas, e por isso mesmo, precisa-se de ter cautela e espírito de observação apurado. O diretor Koji Fukada iguala o espectador no mesmo nível dos personagens e não cansa de pregar peças em ambos. Nem tudo que parece é, afinal, nesse filme surpresas movimentam a vida humana na Terra. Para o diretor nem sempre nossas vidas são determinadas por nós mesmos. Atos de terceiros podem nos impactar mais do as nossas próprias ações. No filme acompanhamos Ichiko, que trabalha como enfermeira há anos para uma mesma família composta por 4 mulheres, uma mãe de meia idade, duas filhas jovens e uma avó idosa, justamente a que precisa de seus cuidados. Ichiko estabelece uma amizade com a filha mais velha, inclusive a ajudando em deveres escolares. Tudo o que sabemos vem do ponto de vista de Ichiko e esse é um dos aspectos mais interessantes dessa obra.
A narrativa proposta por Fukada aparentemente se constrói sem solavancos, mas apenas aparentemente mesmo. A organização do tempo pelo diretor induz a uma enganosa linearidade. Os planos se seguem, mas a sua cronologia não. Na montagem, presente e futuro se esbarram sem que o espectador note essa diferença. O que parece ser contemporâneo não é, pois algumas cenas estão situadas no futuro, sem nenhum sinal de que isto está ocorrendo. O que une as cenas são personagens, que mesmo que não saibamos a princípio, estão entrelaçados no enredo. Só perto do final temos o esclarecimento sobre essa percepção do tempo e entendemos melhor algumas ações de Ichiko no início da trama, que soam como estranhas e deslocadas da trama familiar, quando na verdade não são.
Motoko, a filha mais velha da família, aparentemente é uma coadjuvante na história. Mas será mesmo? O fato de Fukada escolher narrar a trama pelo viés de Ichiko traz questionamentos intrigantes sobre Motoko, e a manipulação narrativa escamoteia ao máximo esse protagonismo. Do meio para o fim, cena a cena, a relação das duas se avoluma e assume o lugar de destaque. Fukada insere tramas e personagens ao longo do filme, como que almejasse nos desviar do que realmente interessa. Mas como já disse, nossa ignorância é a mesma de Ichiko e ela nos prende insistentemente ao filme, graças ao talento da atriz Mariko Tsutsui, que atribui camadas estimulantes na personagem.
Cinema é o uso do falso e do ilusório a brincar com a nossa percepção do mundo. Em "O perfil de uma mulher" é isso o que ocorre ininterruptamente. São sequestros, omissões, denúncias, relações de trabalho, imprensa invasiva, vidas em ruína e muitos outros acontecimentos. Entretanto, a obra se situa em outro lugar, em outros registros. Os acontecimentos soam mais como dispositivos, distrações, pretextos e pano de fundo para a discussão das relações humanas na contemporaneidade. Narrativamente, Fukada brinca com o espectador, ora o identificando com Ichiko ora propondo um distanciamento. Na hora da perseguição da imprensa, na propagação de mentiras e verdades fora do contexto, nos aproximamos dela, mas quando o espírito de vingança dela vem à tona, nos afastamos.
As dissimulações não estão só na narrativa, também contaminam a trama. O filme discorre sobre a fragilidade das vidas que são vividas pela exterioridade, pela superficialidade das aparências e motivadas por vinganças que revelam o vazio existencial e sentimentos de espelhamento de identidades. Amar o outro ou querer sê-lo? São os imbróglios de um mundo tomado por identidades fugidias, em crise existencial, que condena sem julgar, execra antes de investigar e reflete o outro sem amá-lo. Ichiko é tão vítima quanto algoz em uma atmosfera regida pelas aparências, onde a busca da felicidade se esvaiu. O vazio não está mais só na imagem, habita também no âmago de cada um de nós. O humano se perdeu no jogo da vida ao priorizar o jogo ao invés da vida. O cinema de Fukada interroga isso com a contundência necessária.
Visto no Festival INDIE 2020 on line, em 04/11/2020.
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